domingo, 6 de outubro de 2013

Vida Ignorada de Leonor Teles. António Cândido Franco. «Aquele episódio com Teresa, acontecido quase por acidente no paço da Atouguia, chegara ao termo. Durara o tempo dum incêndio, mas o pavio derretera já de vez a cera»

jdact

«(…) Que quadro de desusada folia aquele! Um rei bailando nas ruas como um simples vizinho e uma corte desfeita, dançando de roda, à luz dos archotes, como uma confraria de mesteirais, com alferes, estandarte e bombos. E mais felizes se sentiam assim, desobrigados de si e da máscara que o nascimento lhes afivelara, trocando a presunção da hierarquia pela embriaguez dum passo de dança. A felicidade fica a ser o contrário do cumprimento dum dever, pois este é a canga do mundo enquanto aquela a liberdade de não haver tempo. Quando despontaram do lado do Montijo os primeiros sinais da alvorada, andava meia cidade metida naquela balbúrdia de danças e brinquedos. Os próprios mazorrais, de tochas acesas na mão, bailavam no meio da multidão. Aos clarões da combustão, viam-se-lhes os olhos luzir de inocência e os dentes escuros e estragados sorrir de alegria. Pediu o rei ao paço as trompas de prata que aí tocavam aos ofícios e mandou-as por todas as ruas da cidade alvoraçar seus moradores. Dois pregões anunciavam após elas que ao quarto de alva todos descessem ao Rossio, na cerca do mosteiro onde o novo conde velara armas e fora armado cavaleiro, que aí se armariam tendas, se cozeria pão, se comeria vianda e se beberia vinho. Acorreu a cidade em peso e ali continuaram as trompas a tocar o seu som de graça e o rei a bailar as suas nostalgias. E em comunhão agora de víveres, como no tempo de Isabel de Aragão, todas aquelas gentes se maravilharam de si e da vida.
A novidade deste rei são as danças e os trebelhos, ouviu-se depois, quando tocou a noa e muitos procuravam já a sombra dos pomares ou das cercas para se afundarem no sono. Seriam com certeza as danças a novidade deste rei, que o bodo era já de tradição. Não se percebia é que essa raridade era o fruto duma solidão. Recreios e folguedos serviam para apagar o rasto do rei, desnorteando por momentos os fantasmas da insónia e da saudade, que pungiam mais que gancho de arpão e perseguiam mais que esfomeada águia. Ao mesmo tempo que João Afonso Telo assim corria a São Domingos para velar armas e tomar o título de conde, sossegava Guiomar Pacheco, sua esposa em Vila Real com os filhos e os sobrinhos. Era uma mulher vulgar e industriosa, de saúde rija, que punha toda a sua vontade na boa ordem de sua casa. Diogo Lopes Pacheco, seu irmão, não hesitara, para quebrar as inquietações do rei ou para agitar o sangue novo do príncipe, em se fazer um dos assassinos de Inês; ela por sua vez não temeria em abocanhar o diabo para preservar o tecto. Ficava-se por aí, mas isso chegava para a tornar no eixo certo daquela empresa.
Além disso, sabia procurar os auxiliares que punham em seu redor aquilo que lhe faltava. Esperava que o marido entrasse na sua nova dignidade, para tomar a seu cargo a mudança para o paço de Barcelos. Queixava-se ali, em Vila Real, dos rigores da longa invernia, com os frios assustadores do Marão. Sentia as crianças sofredoras e estava desejosa de as ver nas imediações do oceano, longe das sisudas e ferozes serranias. O largo mar, varrendo as areias claras das praias, punha no ar uma humidade que temperava o ar e adoçava a vida. Barcelos, com as casas encavalitadas sobre as águas do rio Cávado, era um burgo enfeitado e colorido, com o rumor verde dos pinhais por perto. O mar estava a três léguas, a sudoeste, no termo daquele fio de água prateada que nascia nas penedias do norte e deslizava depois, generoso e lento, nas terras baixas, fecundando bosques e pastagens. Havia quem garantisse que nas asas do vento vinham ali bailar glóbulos de areia; outros afirmavam que no silêncio, lá para as bandas do poente, se ouviam as contendas mitológicas das ondas do oceano. Assim como assim, sentia-se, contra aquela linha da terra, pulsar o coração de madeira da comarca do Minho, essa região ruidosa e confusa, fervendo de lutas e gentes. No alto, ficava o castelo, com a torre paceira. Para lá se mudou Guiomar Pacheco com o clã dos Teles de Meneses. Eram oito crianças, cinco rapazes e três raparigas, e um préstito sem fim de pajens e donzelas, de escudeiros e cuvilheiras, de aias, moços e servos domésticos. Demais, havia ainda os rurais adstritos ao paço condal, que não estavam autorizados a pôr o pé na casa, apenas no logradouro da cerca, vivendo a sua vida de bois laboreiros nas choças miseráveis do rio e dos bosques. João Afonso Telo, o conde, veio no fim dessa sazão, quando os calores perdiam intensidade e o rei afogava sozinho as suas mágoas no corpo. Uma antiga aia de Inês, que agora lhe acolhia os filhos e lhe cuidava de quando em quando da casinha do Moledo. Liberto por um momento da apertada exigência do rei, que era sempre viageiro, pouco se fixando e tudo pedindo, o Telo pôde estanciar duas semanas junto da esposa e da prole. O antigo paço de Pedro Afonso, depois das obras de reconstrução que acabara de ter, era muito mais convidativo que o acanhado solar de Vila Real, uma das primitivas casas dos Meneses durienses. Era espaçoso e sobranceiro, chamando a si uma vasta e rica propriedade rural, a perder de vista, onde trabalhavam os servos e os colonos foreiros. Tratava-se duma verdadeira alcáçova fortificada, com igreja, paço e torre ameada, sinal dum largo poder, que ficava logo por baixo do da coroa.
Não tardou Pedro em chamar o seu primeiro vassalo. Aquele episódio com Teresa, acontecido quase por acidente no paço da Atouguia, chegara ao termo. Durara o tempo dum incêndio, mas o pavio derretera já de vez a cera. Foi o primeiro amor de ocasião que Pedro viveu depois da morte da linda Inês e como todos os outro a que se entregou de seguida foi curto e quase anónimo. Cevava o instinto, saciava a sede e ia embora, de olhos fechados. Durante mais de dois anos, aquele impulso que nele sempre fora uma força estupenda a única que seria capaz de acordar a doida paixão duma refinada donzela como Constança Manuel, andara retraído com o nojo que se seguira à perda de Inês. À medida que o tempo passara e aquela vertigem de náusea se desvanecia, voltara-lhe de mistura com a nostalgia do passado e da sua perda o desejo de tocar o corpo sedoso duma mulher. Era um colosso com perto de dois metros, membrudo e bem constituído, de coxas musculosas e braços de pedra. Tinha, no ano em que recebeu a coroa, apenas a idade de trinta e sete anos; há bem mais de dois que não conhecia amores ou a influência do instinto, de tão envolvido que andara na dor». In António Cândido Franco, Vida Ignorada de Leonor Teles, Edições Ésquilo, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-8092-59-5.

Cortesia de Ésquilo/JDACT