quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O Prior do Crato Contra Filipe II. Evocação Histórica. Mário Domingues. «Se a força é que ia ditar a lei, para que havia de preocupar-se com ninharias de etiquetas, que só serviriam para irritar o ânimo de um povo, que ele desejava manter sossegado, como que adormecido?»

Filipe II
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Continua a alastrar o suborno. Aos vendidos chamava-se cristãos
«(…) Parecia que os Goverrradores só revelavam grande pressa e empenho em cumprir a vontade das Cortes. Mas a verdadeira missão daqueles embaixadores era outra, bem mais do interesse particular dos regentes altamente comprometidos na sua manobra pró-castelhana. É que Cristovão Moura, já farto da timidez e da inoperância dos Governadores seus cúmplices, propusera a seu régio amo publicar as negociações secretas realizadas em vida do cardeal-rei. Seria um tremendo escândalo que desvendaria aos portugueses até que ponto foram traídos pelos seus dirigentes, entre os quais também se encontrava a maioria dos actuais Defensores do Reino. Estes achavam-se aterrados. Não só perderiam os rendimentos do negócio, mas também se arriscariam a perder a própria vida. Daí o mandarem pedir particularmente ao rei católico, por intermédio desta embaixada, que os poupasse a tanto perigo e vexame.
Claro que Filipe II manteve o segredo, não porque lhe custasse sacrificar quem se lhe vendera, mas porque nisso estava acirna de tudo a sua conveniência. T'alvez, pela primeira vez na sua vida, Cristóvão Moura desse a seu amo uma sugestão desastrosa. Lá estava, porém, o frio e astuto monarca a evitar o erro, que só o prejudicaria. Revelar que subornara dirigentes e pagara a espiões equivaleria a perder o seu já tão débil prestígio ante o povo lusitano, a quem ele prometia governar com humana generosidade e paternal benevolência.

Apesar da corrupção, ninguém ousava entregar o reino a Filipe II
Este breve período de mês e meio, entre a morte do cardeal-monarca e a dissolução das Cortes, foi fértil em pequenos acontecimentos, que fervilharam como que a denunciarem a alta ebulição a que se chegaria com o terçar das armas. O rei católico querira preparar por todos os meios a fácil entrada dos seus exércitos, pois estava persuadido de que não teria outra forma de apoderar-se do apetecido trono lusitano. Não fora sem alguma hesitação que acabara por receber, com aparente cortesia os embaixadores Manuel Melo e bispo de Coimbra que os regentes lhe enviaram. É que, pensava ele, recebe-los na qualidade de representantes diplomáticos equivalia a reconhecer a independência de um país de que se considerava soberano. Significaria conceder, por inadvertência, uma arma jurídica e política aos portugueses que se lhe opunham.
Para evitar a seu régio amo uma situação tão embaraçosa, ainda Cristóvão Moura tentara convencer os regentes a sustar a partida da embaixada, ameaçando-os com as iras de Filipe II. Os governadores, porém, apesar de aterrados, não o atenderam, porque, por um lado, queriam fazer alguma coisa que persuadisse o povo português de que estavam sinceramente decididos a defender a pátria, por outro, porque desejavam obter do monarca espanhol a garantia de que não divulgaria documentos que desmascarassem a sua venalidade. Já de Espanha, mandaram-lhes dizer os enviados diplomáticos que o rei católico estava na disposição de não os receber; os Governadores expediram-lhes ordens terminantes para que insistissem em ser recebidos; precisavam absolutamente de obter essa efémera vitória que passasse aos olhos do povo por um lampejo vivo da sua pureza patriótica, lampejo que, afinal, se reduzia a um brilho fugaz de fogo-fátuo, irradiado pela podridão da sua venalidade. Chegara-se quase a um rompimento formal, que produziria, tanto nos embaixadores como nos regentes, o efeito de uma catástrofe. Mas, por fim, para grande alívio dos subornados, decidiu-se Filipe II a recebê-los, embalando-os em meras palavras de cortesia que em coisa alguma o comprometiam. Os governadores cantaram vitória, embora soubessem que apenas tinham obtido uma ilusão; a tal ilusão de que tanto necessitavam para deitar poeira nos olhos da grei.
Tivera Filipe II aquela pequena transigência porque, nessa data, os seus preparativos militares achavam-se praticamente concluídos. Se a força é que ia ditar a lei, para que havia de preocupar-se com ninharias de etiquetas, que só serviriam para irritar o ânimo de um povo, que ele desejava manter sossegado, como que adormecido? Não queria entrar em Portugal como conquistador. Ainda tivera esperança de que os próprios governadores, sob o estímulo do ouro e o temor das ameaças de lhes desmascararem a venalidades em que caíram como uma armadilha diabólica, o proclamassem herdeiro da coroa. Mas, apesar de vendidos, apesar de constantemente ameaçados pelos embaixadores castelhanos, eles não se abalançavam a cometer acto de tanta audácia, que lhes poderia custar a vida. Mesmo atascados na lama do suborno até as orelhas, esses portugueses venais não chegaram à baixeza de entregar Portugal ao monarca que os enchia de ouro e promessas. Embora muito débeis, uns restos de pudor ainda os impediam de descer esse último degrau de ignomínia. Filipe II viu então que, se quisesse apoderar-se do trono, teria de promover uma guerra de agressão, teria de enveredar abertamente pelo caminho da violência, que o conduziria à perda das razões jurídicas, embora com noventa e nove probabilidades contra uma de vencer». In Mário Domingues, O Prior do Crato Contra Filipe II, Evocação Histórica, edição da L. Romano Torres, Lisboa, 1965.

Cortesia de RTorres/JDACT