sábado, 12 de agosto de 2017

A Trança de Inês. Rosa Lobato Faria. «Lisboa pouco ultrapassa o Lumiar, Benfica, Monsanto, o Porto fica-se pela Foz, Campanhã e São Mamede. Tudo o resto tem sido sistematicamente demolido»

Cortesia de wikipedia

«Um não sei quê que nasce não sei onde, vem não sei como e dói não sei porquê». In Luís de Camões

«(…) Talvez que, depois daqueles milhares de anos longos em que o tempo era o seu próprio embrião, o primeiro milénio da nossa era fosse a infância do tempo. Naquele século catorze que tantas vezes se me torna presente, encontro a demora da adolescência da história, o tempo detendo-se na penumbra dos castelos de pedra. No final do século vinte, que me trouxe a este cativeiro, descubro um ritmo diferente, mais vivo, mais rápido. Mas no princípio do século vinte e dois que agora frequentemente me aparece, tudo se passa em clarões velocíssimos numa sucessão de imagens iluminadas a azul-gelo, azul-inquietação, azul-miragem, como se o tempo tivesse envelhecido e estivesse com pressa de morrer. Estou louco, dirão. Sim, estou louco, já que chamam loucura a qualquer comportamento menos convencional ou sempre que a nossa mente tem acesso a um pouco mais do que à trivialidade estabelecida. Anda, vadio. Hoje vais comer ao refeitório. Já sabes que à mais pequena confusão...
Mas eu estou calmo. Estou a pensar nisto do tempo, estou a viajar dentro da minha cabeça e, excepcionalmente, estou com fome. Sinto falta de comer sentado à mesa, o prato na mão corta-me o apetite. Há caldo, a que eles chamam verde, mas onde as couves são castanhas. Há batatas guisadas com toucinho que uma vez por outra traz um pouco de carne entremeada e é bom. Tem molho e deram-me uma boa fatia de pão. E quando estou a limpar o prato como se tivesse que devolvê-lo lavado, vem-me tudo à ideia. A primeira imagem é a do oficial de ligação entre o SPP e os serviços prisionais, a dizer, levem-no, levem-no, não me façam perder tempo com o que já está decidido. Porque eu errei. Pequei contra o Planeta.
Este é um tempo em que os Governos da Terra decidiram que todos os males do mundo advêm do excesso de população. Refiro-me aos Governos Continentais donde emanam decisões que globalizam toda a legislação relativa à protecção do Planeta Terra. As crianças aprendem na escola que é preciso escolher entre o Homem e a Natureza, e ao escolhermos a Natureza estamos a salvar o Homem. Por mais cruel que isso seja para o indivíduo, acabaram-se os tempos bárbaros em que os interesses pessoais se sobrepunham à salvação da Terra. Esta doutrina intitula-se Salvismo. Agora o Planeta é o deus a quem todos devemos sacrificar. Por isso as leis são inexoráveis. Pena de morte para quem poluir as águas, derrubar árvores, incendiar florestas, matar animais ou os mutilar. Pena de morte para quem lançar qualquer espécie de substância poluente na atmosfera. Pena de morte para quem se reproduzir fora do sistema. Há, evidentemente, regras muito estritas para a criação e abate de espécies para alimentação dos humanos. Cedências no que se refere a bens de primeira necessidade. A vida tornou-se simples, próxima da natureza: estimula-se o artesanato, encoraja-se o despojamento. Mas isso só é possível com a redução drástica da população, para que se possa acabar com o abate de árvores, a industrialização, a construção desenfreada, o exaurimento dos recursos naturais.
Os Governos Nacionais orgulham-se das suas estatísticas que revelam diminuição progressiva da população que, com o tempo irá atingir a quota proposta de 20%. As medidas foram implementadas nos meados do século XXI, nem sequer passaram os cem anos das previsões, apenas cerca de setenta, pois estamos ainda no primeiro quartel do século XXII. Eu nasci em Dezembro de 2084, sou adulto na minha rememoração dos acontecimentos. Chamo-me Pedro Rey e negoceio em madeiras. É uma profissão trabalhosa, mas que me proporciona um nível de vida razoável. Dada a proibição de abater uma árvore que seja, a madeira tornou-se preciosa e atinge por vezes preços muito interessantes. Mas há que recuperá-la das demolições das cidades grandes. Isto é. As cidades periféricas, as zonas-dormitório, deixaram de existir porque a população diminui cada vez mais. E muitos dos habitantes das cidades, entusiasmados com os vantajosos apoios que lhes são propostos, optaram por ir viver em pequenas comunidades nos campos, aldeias verdejantes espalhadas por todo o país. Lisboa pouco ultrapassa o Lumiar, Benfica, Monsanto, o Porto fica-se pela Foz, Campanhã e São Mamede. Tudo o resto tem sido sistematicamente demolido para que, uma vez os terrenos limpos e tratados, se possam plantar florestas e jardins. Respeitam-se os edifícios que pela sua arquitectura ou valor histórico mereçam ser preservados e que passam a erguer-se entre frondosas matas em vez de continuarem a ombrear com dependências de bancos e lojas de quinquilharias. Portugal tornou-se mais bonito. E a Natureza, apaziguada, fez uma trégua na sua profusão de catástrofes e epidemias. Mas não. Ainda não é o paraíso». In Rosa Lobato Faria, A Trança de Inês, Círculo de Leitores, cortesia de ASA Editores, 2005, ISBN 978-989-660-034-1.

Cortesia CL/JDACT