quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O Harém de Kadafi. Annick Cojean. «Acho que tenho um dom para captar o gestual e as expressões alheias. Juntas, chorávamos de tanto rir»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nasci em Marag, povoado da região de Jebel Akhdar, a montanha Verde, não muito distante da fronteira com o Egipto. Era 17 de Fevereiro de 1989. Sim, 17 de Fevereiro! Para os líbios, é impossível ignorar essa data: foi o dia em que eclodiu a revolução que tirou Kadafi do poder, em 2011. Noutras palavras, um dia destinado a feriado nacional, ideia que muito me agrada. Três irmãos vieram antes de mim, e outros dois nasceram depois, assim como uma irmãzinha. Mas eu fui a primeira menina, e meu pai exultava de alegria. Ele queria uma menina. Queria uma Soraya. Tinha esse nome em mente bem antes de se casar com minha mãe. Ele falou-me muitas vezes da sua emoção no momento em que veio ver-me. Eras bonita! Muito bonita!, sempre dizia. E ficara tão feliz que, no meu sétimo dia de vida, na celebração que se costuma organizar após os nascimentos, ele fez uma festança, como uma festa de casamento. Convidados encheram a casa, tinha música, um grande buffêt... Queria tudo para a filha, as mesmas oportunidades, os mesmos direitos que os filhos teriam. Certa vez chegou a dizer-me que sonhava em ter uma filha médica. Tanto é verdade que no colégio fez com que eu me matriculasse em ciências naturais. Se minha vida tivesse seguido o curso normal, talvez eu tivesse mesmo estudado medicina. Quem sabe? Mas que ninguém me venha falar em igualdade de direitos com meus os irmãos. Ah, isso não! Que nenhuma moça líbia acredite nessa ficção. Basta ver como minha mãe, por mais moderna que seja, acabou por renunciar à maior parte dos seus sonhos.
E ela tinha sonhos enormes. E todos se frustraram. Ela nasceu em Marrocos, terra da avó que tanto adorava. Mas os pais eram tunisianos. Ela tinha bastante liberdade, visto que quando nova fez estágio num salão de beleza em Paris. Isso é que é sonho, não? Foi ali que conheceu meu pai, num grande jantar numa noite do Ramadão. Ele trabalhava na embaixada da Líbia e também adorava Paris. A atmosfera era tão leve, tão alegre em comparação com o clima de opressão na Líbia. Ele até pôde fazer cursos na Aliança Francesa, como lhe propuseram, mas era muito ansioso e preferia sair, passear, aproveitar cada minuto de liberdade, ver tudo o que era possível. Hoje ele se arrepende de não saber falar francês. Isso sem dúvida teria mudado a nossa vida. Em todo o caso, quando ele conheceu a mãe, não teve dúvida. Pediu a mão dela em casamento, que ocorreu em Fez, onde ainda morava a avó dela. E então o que aconteceu? Ele a levou de volta, todo orgulhoso, para a Líbia.
Que choque foi para a minha mãe! Ela jamais imaginara viver na Idade Média. Ela que era tão vaidosa, tão preocupada em andar na moda, bem penteada, maquilhada, teve de se esconder atrás de um tradicional véu branco e limitar ao máximo as suas saídas de casa. Ficou feita uma leoa enjaulada. Ela, que sempre se sentira solta, de repente viu-se amarrada. De forma nenhuma aquela era a vida que o pai a fizera imaginar. Ele havia falado em viagens entre a França e a Líbia, do seu trabalho, que ele poderia realizar alternando entre os dois países... E foi assim que, em questão de dias, ela foi parar no país dos beduínos. Entrou em depressão. Então o pai fez de tudo para se mudar com a família para Benghazi, a segunda maior cidade da Líbia, no leste do país. Uma cidade provinciana, mas sempre considerada um pouco rebelde em relação a Trípoli, onde o poder estava instalado. Ele não podia levá-la a Paris, para onde continuava viajando com frequência, mas pelo menos ela estaria morando numa cidade grande, não precisaria usar o véu e poderia até trabalhar como cabeleireira num salão que abriria em casa. Como se isso fosse consolá-la... Ela continuou deprimida e sonhando com Paris. Contava para nós, seus filhos, dos passeios pela Champs-Elysées, dos chás com as amigas no terraço dos cafés, da liberdade dos franceses. Falava também da protecção social, dos direitos dos sindicatos, de como a imprensa podia ser audaciosa. Paris, Paris, Paris... Isso acabou nos fazendo mal, mas por culpa do meu pai. Ele tinha a ideia de abrir um pequeno negócio em Paris, um restaurante no 15º arrondissement, que a mãe poderia tocar. Acontece que ele logo brigou com o sócio, e o plano foi por água-abaixo. Também deixou de comprar um apartamento na Défense. Na época, custava vinte e cinco mil dólares. Faltou-lhe coragem, e até hoje se lamenta por isso.
São, portanto, de Benghazi as minhas primeiras lembranças da escola. Elas estão um pouco confusas na memória, mas lembro que foi um tempo muito feliz. A escola chamava-se Os Leõezinhos da Revolução, e eu tinha quatro amigas inseparáveis. Eu era a palhaça do grupo, minha especialidade era imitar os professores quando eles deixavam a sala, ou fazer macaquices atrás do director. Acho que tenho um dom para captar o gestual e as expressões alheias. Juntas, chorávamos de tanto rir. Eu podia tirar zero em matemática, mas era a melhor em língua árabe. O pai não ganhava bem. E o trabalho da mãe tornou-se indispensável». In Annick Cojean, no Harém de Kadhafi, Editora Albatroz, Porto Editora, colecção Memórias e Testemunhos, 2014, ISBN 978-989-739-010-4.

Cortesia de EAlbatroz/JDACT