sábado, 12 de agosto de 2017

Diário do conde de Sarzedas. Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656). Artur T. Matos. «Também a queda na própria nau, ou o disparo fortuito fizeram aumentar o número de acidentes»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Foram companheiros d e viagem do vice-rei o desembargador Manuel Martins Madeira, que serviu de auditor da armada, alguns nobres e vários padres franciscanos, dominicanos e vinte e cinco jesuítas, alguns deles franceses e italianos. Entre estes registe-se a presença de Manuel Godinho, autor da Relação do Novo Caminho que fez por terra e mar vindo da Índia para Portugal no ano de 1663 e que será o pregador da festa de São João. Se bem que a mortalidade tivesse sido reduzida, pelo menos na nau do vice-rei, da qual nos chegou melhor conhecimento, nem por isso ela foi inexistente. Registaram-se seis mortes que atingiram dois grumetes e três soldados; dois destes vinham presos do Limoeiro e, ao que parece, já doentes; mas também um pajem de 12 anos conheceu a morte no mar, não tendo tido a sorte de poder agarrar-se a um balde, como anteriormente lhe acontecera. Melhor sorte teriam dois pajens e outros tantos soldados que, caídos no mar, conseguiram salvar-se agarrando-se a tábuas, a um cabo da popa, ao balde de tirar água do mar ou porque socorridos por um batel. Também a queda na própria nau, ou o disparo fortuito fizeram aumentar o número de acidentes.
Refere Tissanier que o cômputo de mortos nas naus Santíssimo Sacramento e Bom Jesus não terá ultrapassado as duas dezenas, enquanto no galeão São Francisco se ficara pelos sete elementos: cinco de doença e duas crianças que morreram afogadas. De um acidente vascular faleceria, no mesmo galeão, o dominicano António Cruz de cerca de 50 anos de idade. Apesar do elevado número de pessoas que viajaram nesta armada, talvez pela curta permanência na zona das calmarias, pela relativa rapidez da viagem e pelas condições a bordo, o número de doentes não foi dos mais elevados. À chegada a Goa dariam entrada no hospital cerca de centena e meia. Na Bom Jesus da Vidigueira, onde havia maior população, mas talvez pelas suas eventuais melhores condições, sairiam apenas vinte necessitados de cuidados médicos. O escorbuto atingiu pelo menos um soldado e outro tripulante desta nau e, na altura da terra do Natal, vários marinheiros encontravam-se doentes. No galeão São Francisco alguns tripulantes passaram por enfermidades, levando o seu capitão a solicitar a substituição, pedido que o vice-rei não quis satisfazer de imediato, por se estar a debater com a mesma dificuldade.
Na almiranta, o mestre é acometido de maleita e é pedida a presença do médico. Mas como este não se achasse bem de saúde, optou-se por evacuá-lo para a Bom Jesus, recebendo aqui o necessário apoio. Posteriormente o seu capitão-mor, António Sousa Meneses, passou por grave e prolongada doença de estômago, com sangrias sucessivas, deixando o vice-rei em cuidados. Apressou-se, assim, a mandá-lo visitar por um criado com alguns mimos, enviando-lhe também o médico e, posteriormente, os medicamentos por este solicitados. Rodrigo Lobo Silveira parece ter gozado sempre de boa saúde na viagem. Aliás, tendo por costume, na Primavera e no Outono, tomar um purgante, não o dispensou a bordo.
O quotidiano a bordo da carreira da Índia é assunto sobre o qual vários historiadores se têm debruçado fixando-se, sobretudo, no século XVI, época em que as fontes são mais abundantes e ricas. Todavia, se uma viagem nunca é igual a outra, importará determo-nos sobre dois ou três aspectos desse quotidiano referidos neste diário: a prática e os festejos religiosos, os passatempos e os conflitos. A armada largou de Lisboa em terça-feira de Semana Santa e, conhecidas as dificuldades já referidas da partida, só na quinta-feira de Endoenças se rezaram as primeiras missas a bordo, até porque este era também o dia da invocação de Nossa Senhora da Encarnação. Não é, por isso, de estranhar, que as tradicionais cerimónias não tivessem ocorrido com o esplendor de outrora. No sábado teve lugar a missa de Aleluia, finda a qual o vice-rei mandaria atirar três peças. E, por ter percebido que parte da população de bordo não se havia confessado previamente, como era seu dever, ordenou que todos o fizessem nesse dia. O domingo de Páscoa também seria assinalado com a celebração de missas». In Artur Teodoro Matos, Diário do conde de Sarzedas, Vice-rei do Estado da Índia (1655 -1656), Lisboa, colecção Outras Margens, CNCDPortugueses, 2001, ISBN 972-787-052-X.

Cortesia de CNCDP/JDACT