quarta-feira, 23 de agosto de 2017

O diabo no corpo. Raymond Radiguet. «Todo este cenário deixou em mim uma memória de fogo-de-artifício. Nunca tanto vinho foi desperdiçado nem mortas tantas flores»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) À uma hora tinha suplicado ao director que não dissesse nada ao meu pai; às quatro fervia com vontade de lhe contar tudo. Nada me obrigava a isso, mas faria a confissão em nome da sinceridade. Sabendo que o meu pai não se aborreceria, sentia-me, na verdade, encantado com a ideia de que conhecesse a minha proeza. Confessei-a, então, acrescentando com orgulho que o director me havia prometido absoluta discrição (como uma pessoa importante). O meu pai queria saber se eu não teria imaginado, com todos os pormenores, aquela história de amor. Foi procurar o director. Durante essa visita, falou casualmente do que acreditava ser uma farsa. O quê? Questionou então o director, surpreso e muito aborrecido; ele contou-lhe isso? Implorou-me que me calasse, dizendo que o senhor o mataria.
Essa mentira do director era uma forma de se desculpar, o que contribuía ainda mais para o meu orgulho masculino. Ganhei, de imediato, a estima dos meus companheiros e uma piscadela de olho do professor. O director escondia a raiva. O infeliz ignorava o que eu já sabia: o meu pai, chocado com a sua conduta, tinha decidido deixar-me terminar o ano escolar para depois me tirar dali. Estávamos no início de Junho. A minha mãe, como não queria que aquilo influenciasse os meus prémios nem as minhas coroas, esperou pela atribuição para depois se referir ao caso. Chegado esse dia, e graças a uma injustiça do director, que receava confusamente as consequências da sua mentira, fui o único da classe a receber a coroa de ouro e também o prémio de excelência. Cálculo mal feito: o colégio perdia assim os seus dois melhores alunos, pois o pai do verdadeiro merecedor do prémio de excelência retirou também o seu filho.
Alunos como nós serviam de chamariz para outros. A minha mãe achava que eu era demasiado novo para ingressar no Henri-IV. No seu íntimo, o que isso significava era que eu teria de começar a apanhar o comboio. Fiquei então dois anos em casa a trabalhar sozinho. Prometia a mim próprio alegrias infinitas, pois, como conseguia fazer em quatro horas o trabalho que os meus antigos colegas não completavam em dois dias, ficava com metade do dia livre. Passeava sozinho nas margens do Marne, que era de tal forma o nosso rio que as minhas irmãs, quando falavam do Sena, diziam um Marne. Subia para o barco do meu pai, apesar de ele me proibir de o fazer; não remava, sem querer admitir que o meu medo não era pela desobediência, mas sim medo puro. Lia, deitado no barco. Em 1913 e 1914 passaram por ali uns duzentos livros. Não os que são considerados maus livros, mas os melhores, se não pelo pensamento, ao menos pelo mérito. Por isso, bem mais tarde, na fase em que os adolescentes desprezam os livros da Bibliothèque Rose, encantei-me pelo seu charme infantil, que anteriormente não teria querido ler por nada deste mundo.
A desvantagem daquelas distracções em alternância com o trabalho era que o ano, do meu ponto de vista, se transformava todo numas falsas férias. Assim, o meu trabalho diário resumia-se a pouca coisa; mesmo trabalhando menos tempo do que os outros, acabava por ter de o fazer enquanto eles estavam de férias e, por isso, essa pouca coisa era como uma rolha de cortiça que um gato traz toda a vida agarrada à cauda, quando preferiria, com certeza, andar um mês com uma caçarola atrelada. Aproximavam-se as verdadeiras férias e eu tinha pouca noção disso, pois significavam, para mim, o mesmo regime. O gato continuava a olhar o queijo através da queijeira. Mas veio a guerra que partiu a queijeira. Os donos tiveram outros gatos para castigar e o gato divertia-se.
Verdade seja dita, em França toda a gente se divertia. As crianças, levando debaixo do braço os livros que tinham recebido como prémio, aglomeravam-se diante dos cartazes. Os maus alunos aproveitavam-se da desorientação das famílias. Íamos todos os dias, depois do jantar, à estação de J…, que ficava a dois quilómetros de casa, ver passar os comboios militares. Levávamos campânulas, que atirávamos aos soldados. Senhoras de bata serviam vinho tinto de bidões e derramavam litros e litros sobre a plataforma juncada de flores. Todo este cenário deixou em mim uma memória de fogo-de-artifício. Nunca tanto vinho foi desperdiçado nem mortas tantas flores. Tínhamos de enfeitar as janelas da nossa casa. Mas cedo deixámos de ir a J… Os meus irmãos e irmãs começavam a fartar-se da guerra, a achá-la muito demorada. Tirava-lhes a beira-mar. Habituados a levantarem-se tarde, tinham agora de ir comprar os jornais às seis horas. Triste diversão! Mas, por volta do dia vinte de Agosto, estes jovens monstros recuperam a esperança. Em vez de saírem da mesa, onde as pessoas grandes se demoram, deixam-se ficar agora a ouvir o meu pai falar da partida. De certeza que já não haveria meios de transporte». In Raymond Radiguet, O diabo no corpo, Resumo, 2009, S/R, Wikipedia.

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