segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O Bosque da Noite. Djuna Barnes. «Sem ter ainda filhos aos cinquenta e nove anos, Guido preparara com o seu coração, para a criança que ia nascer»

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«Em princípios de 1880, apesar da bem fundada dúvida que tinha sobre a sensatez de perpetuar esta raça que tem o consentimento do Senhor e a desaprovação dos homens, Hedvig Volkbein, mulher vienense de grande energia e beleza marcial, estendida numa cama de dossel de um sumptuoso e espectacular carmesim, o lambrequim marcado com as asas bifurcadas da Casa dos Habsburgo e a capa de cetim da colcha com as armas de Volkbein desenhadas em fios de desbotado ouro maciço, deu à luz, aos quarenta e cinco anos, um filho único, um rapaz, sete dias depois da data prevista pelo médico.
Voltando-se para este campo de batalha, agitado pelo ruído de cavalos matinais na rua em frente, com a grosseira pompa de um general saudando a bandeira, chamou-lhe Felix, lançou-o para fora de si e morreu. O pai da criança desaparecera seis meses antes, vítima da febre. Guido Volkbein, judeu de ascendência italiana, fora ao mesmo tempo um dandy e um apreciador de boa comida que nunca aparecia em público sem que a condecoração referente a uma qualquer distinção perfeitamente desconhecida lhe colorisse a botoeira com a sua discreta fita. Pequeno, rotundo e muito tímido, tinha o ventre ligeiramente proeminente e com uma curva ascendente que realçava os botões do colete e das calças, assinalando o exacto meio do corpo com essa espécie de linha obstétrica que vemos nos frutos, o arco de círculo, inevitável resultado das pesadas rodadas de borgonha, schlagsahne e cerveja.
O Outono, que mais que qualquer outra estação o cercava de reminiscências raciais, o Outono, esse tempo de ansiedade e horror, era, dizia ele, a sua estação. Podia então ser visto a passear no Prater, levando no punho ostensivamente fechado o estranho lenço de linho amarelo e negro que invocava alto e bom som a ordenança de 1468, promulgada por um tal Pietro Barbo, exigindo que, de corda ao pescoço, a raça de Guido corresse no Corso para divertimento da populaça cristã, enquanto as damas de nobre nascimento, assentes em colunas vertebrais demasiado refinadas para poderem estar quietas, se erguiam dos assentos e, na companhia dos cardeais de vestes vermelhas e dos monsignori, aplaudiam com o abandono frio mas histérico de um povo que é injusto e feliz, e o próprio papa se precipitava da sua morada celestial e, através do riso de homem que esquece os anjos, readquiria a sua animalidade. Esta recordação e o lenço que a acompanhava tinham produzido em Guido (como certas flores levadas a um apogeu de extática luxúria que, mal alcançam o seu tipo específico, definham) a substância total do que é ser judeu. Tinha caminhado, ardente, imprudente e maldito, com as pálpebras frementes sobre os olhos espessos, ensombrecidos pela dor de uma participação que, quatro séculos mais tarde, faria dele uma vítima quando sentia na própria garganta o eco do grito que outrora correra sobre a Piazza Montanara: Roba Vecchia!, a degradação à custa da qual os seus haviam sobrevivido.
Sem ter ainda filhos aos cinquenta e nove anos, Guido preparara com o seu coração, para a criança que ia nascer, um coração modelado sobre a sua principal preocupação: a homenagem sem remorsos à nobreza, a genuflexão feita através de uma contracção muscular do corpo perseguido que se deixa cair diante do que é eminente e inacessível, como diante de um grande entusiasmo. Fora isso que dera a Guido, como também daria a seu filho, um pesado sangue interdito.
E tinha sido sem filhos que morrera, se exceptuarmos a promessa suspensa na cintura cristã de Hedvig. Guido vivera como todos os judeus, que, separados do seu povo por acidente ou opção, descobrem que têm de habitar um mundo cujos elementos, precisamente por serem estranhos, forçam o espírito a sucumbir a uma populaça imaginária. Quando um judeu morre apoiado a um seio cristão, morre dilacerado. Apesar de toda a sua agonia, foi sobre um proscrito que Hedvig chorou. Naquele instante o seu corpo tornou-se uma barreira e Guido morreu contra essa parede, perturbado e só. Em vida tinha feito tudo para transpor esse abismo impossível». In Djuna Barnes, O Bosque da Noite, 1936, 1950, Relógio D’Água Editores, 2010, ISBN 978-989-641-161-9.

Cortesia de Relógiod’águaE/JDACT