sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «E apontava com o dedo estendido o camarote do pirata, aquele de que eu gostara para mim e agora ocupas, essa cela encantadora para refúgio de um intelectual cansado»

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«(…) Gostámos da cabana. Não sei quem mais de nós dois, mas, de qualquer forma, o teu entusiasmo pareceu maior do que o meu, e não pelo que ias cobrar de comissão, uns dez por cento sobre a renda, mas sim pela verdadeira vontade que tinhas e ocultavas de passar ali uns dias, de ver como o Outono se metia no tempo, se apoderava uma a uma das folhas do bosque: notava-se-te nos olhos, no ágil gesto das mãos, sobretudo na voz, quando elogiavas as virtudes e méritos da ilha e do refúgio, lugar para o amor também, não só para o estudo e para o recolhimento. Foram uns minutos em que, se Claire ali se encontrasse, teria sorrido um pouco com aquele seu sorriso de anglo-saxão prepotente perante os povos inferiores, e no caso de ir mais além do sorriso, que já basta por si próprio para uma pessoa se sentir incomodada, ter-te-ia censurado como a uma meridional incorrigível o movimento e a expressividade, precisamente o que eu elogio em ti, a voz que sobe e se quebra, e o que dizem as tuas mãos quando a língua se recreia. Estava entusiasmado a contemplar-te, sentara-me num dos cadeirões e via-te ir e vir, abrir portas e armários, parar junto à lareira, descrever-me a chama estremecida da lareira nas noites escuras, e a luz das velas trémulas se quisesse acendê-las, criando nas esquinas as sombras do mistério do medo, o levei tempo a aperceber-me do teu desejo; quando o compreendi, apressei-me a convidar-te: por que é que não vens também e me acompanhas durante todo esse tempo? E apontava com o dedo estendido o camarote do pirata, aquele de que eu gostara para mim e agora ocupas, essa cela encantadora para refúgio de um intelectual cansado. Perguntaste-me se estava a oferecer-te a sério; respondi-te que sim, e ficaste pensativa durante um bom bocado, até que me disseste: era preciso ir e vir para a universidade todos os dias. Sim, e depois? Também não vais da tua casa? Foi muito curioso, um pouco incoerente, pelo menos segundo o meu modo racional de ajuizar: não respondeste nem que sim nem que não. Disseste: apetece-me tomar banho. Peço-te que não olhes: não quero que me vejas nua. E sem que eu concordasse, sem que sequer protestasse contra a tentação, saíste, e uns minutos depois, traidor como sou, gente de pouco fiar, vi-te bracejando lenta pelas águas do lago, sair mais tarde e esconderes-te depressa, talvez no interior da cabana. Gostei então do teu corpo, magro e moreno, não rosado como o das vikings, mas sim de pele como a pátina das teclas de um piano velho. E lembrei-me enquanto o contemplava daquele poema egípcio que Claire nunca te recitou, porque provavelmente não figura na sua limitada antologia: é tão bonito atirar-me para dentro do tanque e ali banhar-me à tua frente! Vê como estou bela, como a minha túnica molhada molda o meu corpo! Mergulho ao pé de ti, e, ao emergir, aproximo-me de ti e levo preso nos caracóis um peixinho vermelho. Aproxima-te e revista-me! Regressaste ao salão enxugando o cabelo. A água estava um pouco frio, e pediste-me whisky, se eu tivesse: dei-to do meu frasco de prata, aquele que Tatiana me ofereceu quando foi aprovada summa cum laude a tese que eu tinha orientado. Perguntaste-me uma vez, ainda éramos amigos há pouco tempo, se Tatiana tinha sido minha amante; desatei a rir: Tatiana é uma rapariga sensata; acredita no casamento e vai casar-se com um químico qualquer que resgatou da droga. O frasquinho de prata para whisky que me deixou como recordação recebera-o do pai, oficial do exército do czar, acabado de sair da escola quando se deu aquilo da revolução. Tatiana é o fruto tardio do casamento entre o tenente emigrado e uma menina colombiana encontrada numa catástrofe qualquer: falava o espanhol, Tatiana, ondulante e doce da sua mãe, o mais bonito que alguma vez ouvi. Não. Nunca foi minha amante.
Nunca te disse que o teu corpo, visto despido mais algumas vezes, todas as que tomaste banho no lago, não é um corpo de mãe, nem sequer de esposa: eu destiná-lo-ia a outro tipo de amor feito de tempestade e tormenta. Vendo-o pela cortina entreaberta, iluminava-o um bocadinho o sol poente, era terrível e seco como um relâmpago; compreendi então porque é que agrada a Claire, e um dia dir-te-ei as razões, embora ainda não perceba porque é que me agrada a mim, e temo que nunca o possa explicar satisfatoriamente, nem sequer nas páginas deste caderno, onde posso escrever tudo, onde desejaria fazê-lo». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
                                                                                                                                
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT