terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «Rolando de Cremona agrediu-o, furioso. Antepor Aristóteles à Bíblia será para vós uma pequena coisa? Estou surpreendido por vos ter sido concedida a facultas docendi»

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O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Uma questão que quero colocar-vos, respondeu o frade. Espero que não seja outro sarilho. Infelizmente assim é. O dominicano apontou para Suger. Aquele é magíster medicinae no Studium... Conheço-o, como todos os que ocupam uma cátedra em Paris, atalhou Philippus. Porque o trouxestes à minha presença? Transgrediu as proibições referentes a Aristóteles. Ensina filosofia natural! O chanceler virou-se para o acusado. Atribuem-vos uma acção deveras grave, magíster. Tencionais pronunciar-vos em vossa defesa? Trata-se de um mal-entendido, reverendo padre, minimizou Suger. Eu ensino medicina, não filosofia natural. Frei Rolando deve ter-se confundido.
Mentira!, gritou Rolando de Cremona. Eu e o meu confrade ouvimos muito bem. Ele admitiu que Deus não pode modificar as leis da natureza, pondo assim em discussão a Sua omnipotência. Como se sabe, trata-se de uma afirmação aristotélica. Era apenas uma forma de levar os meus alunos a raciocinar, justificou-se o médico, para acalmar as águas. Todos os fenómenos dependem de uma causa, eis em síntese o que eu estava a explicar-lhes. Uma defesa fraca, pensou. No entanto, pouco havia a fazer. Não podendo negar as acusações, apelava à clemência do chanceler. Que, como única resposta, abanou a cabeça.
Estava a divagar, magíster. Um crescendo de irritação transpareceu do olhar de Philippus. Agora sim, incutia sujeição. Frei Rolando está a fazer acusações precisas. Sois lento de compreensão? Palavras pesadas, quase ofensivas. Suger sentiu-se ferido no seu orgulho e pôs de lado a moderação. Frei Rolando não percebe nada de ciência médica, exclamou, mandando para o diabo qualquer possibilidade de compromisso. Como ousa meter o nariz onde não é chamado?
Baixai a voz, magíster, não estamos no mercado. O homem sentado chamou a sua atenção com um aceno autoritário. E deixai que vos refresque a memória. O sínodo de Sens de 1210 proibiu a leitura e o comentário de Aristóteles. Esta proibição foi renovada pelos Estatutos de 1215 e mais recentemente expressa pelo nosso pontífice…
Enquanto o chanceler exibia aquele leque de proibições, Suger sentia-se a cozer em lume brando. Um princípio de náusea começou a atormentar-lhe o estômago ao mesmo tempo que as paredes da sala pareciam ficar progressivamente mais estreitas. A situação não prometia nada de bom. Até há uns anos, tolerava-se que os mestres ensinassem a filosofia natural e recorressem a Aristóteles. Em Toulouse ainda era permitido. Mas não em Paris, onde o tradicionalismo imperante continuava a encarar a filosofia como uma escrava da teologia, a sacrificar sempre que resultava incómoda. Em obediência ao cargo que ocupo, concluiu Philippus, não posso consentir, por razão alguma, que um docente de Paris divulgue o aristotelismo. Vós compreendeis, se chegasse aos ouvidos do papa... Reverendo padre, compreendo muitíssimo bem, defendeu-se o médico. Com toda a franqueza, porém, penso que estais a considerar que as coisas são mais graves do que realmente são.
Rolando de Cremona agrediu-o, furioso. Antepor Aristóteles à Bíblia será para vós uma pequena coisa? Estou surpreendido por vos ter sido concedida a facultas docendi. Mas vós não podeis seguramente anular-ma, frade, defendeu-se Suger, que ardia de desejo de lhe apertar o pescoço. Eu, porém, posso, preveniu-o o chanceler. Se demonstrasse clemência para convosco, daria a impressão de me colocar ao lado de quem divulga a filosofia natural. Muitas vezes deixei correr. Demasiadas vezes fingi que não era nada! O médico ficou petrificado. Nunca se sentira tão humilhado. O seu título e as suas competências eram despidos de qualquer valor, a sua opinião posta a ridículo. Pensou no pai e nos sacrifícios que fizera para o mandar estudar. Pensou nas dificuldades superadas em todos aqueles anos... Não, disse para consigo. Não podia aceitar tais acusações sem pelo menos tentar contrariá-las. E apertando o abdómen para conter a indisposição, apontou o dedo contra o chanceler: desafiareis a corporação dos mestres na base de uma calúnia?» In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
                                                                                                              
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