sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

Amor aos Mortos. Ava Dellaira. «Vi que não entregou a primeira tarefa, a carta. Olhei para baixo, a luz reflectida no chão, e murmurei: ah, é. Desculpa. Ainda não terminei. Certo»

jdact e wikipedia

Querida Elizabeth Bishop
«(…) Quero contar duas coisas que aconteceram na aula de inglês hoje. Lemos um poema seu, e a classe ouviu a minha voz pela primeira vez. Faz duas semanas que estou no ensino médio, e até agora passo a maior parte da aula olhando pela janela, vendo os pássaros voando entre fios telefónicos e as árvores. Eu estava pensando num garoto, Sky, e pergunto-me o que ele vê quando fecha os olhos, quando ouvi o meu nome. Olhei para a frente. Foi como se um passarinho batesse as asas no meu peito. A sra. Buster estava olhando para mim. Laurel, você pode ler? Eu não sabia em que página estáva. Me deu uma branca. Então Natalie inclinou-se e colocou o meu texto na página certa. Começava assim:
                  
A arte de perder não é nenhum mistério;
tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

No começo, fiquei nervosa. Mas, conforme eu ia lendo, fui prestando atenção e entendendo.

Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita. Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mãe. Ah! E nem quero
lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas. E um império
que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

Mesmo perder você (a voz, o ar etéreo
que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério.

A minha voz deve ter saído trémula, porque o poema era um terremoto em mim. Quando terminei, a sala estava em completo silêncio. A sra. Buster fez o que sempre faz. Encarou a turma com o seu grandes olhos esbugalhados e disse: o que acharam? Natalie lançou um olhar na minha direcção. Acho que ela se sentiu mal porque todos estavam a olhar para mim, e não para a professora. Então levantou a mão e disse: bem, é claro que ela está a mentir. Não é fácil perder as coisas. Em seguida, todos pararam de olhar para mim e viraram-se para Natalie. A sra. Buster perguntou: porque algumas coisas são mais difíceis de perder que outras? Natalie respondeu com um tom de não acredito que perguntou isso: por causa do amor, claro. Quanto mais se ama alguma coisa, mais difícil é perder.
Levantei a mão sem nem me dar conta. Sabe, acho que, quando perde alguma coisa próxima, é como perder-se a si mesmo. É por isso que, no final, até escrever é difícil para ela. Ela quase não sabe como fazer. Porque quase não sabe mais quem ela é. Todos os olhos se voltaram para mim, mas, na mesma hora, ainda bem, tocou o sinal. Peguei as minhas coisas o mais rápido possível. Olhei para Natalie, e pareceu-me que ela estava me esperando. Achei que ela finalmente me ia convidar para almoçar, e eu não ia mais precisar ficar sozinha. Mas a sra. Buster falou: Laurel, posso conversar consigo um minuto? Fiquei com raiva da professora, porque Natalie se foi embora. Esperei, inquieta, diante da mesa, e ela perguntou: como está?
A palma da minha mão ainda estava suada por ter falado na frente de todos. Hum… bem. Vi que não entregou a primeira tarefa, a carta. Olhei para baixo, a luz reflectida no chão, e murmurei: ah, é. Desculpa. Ainda não terminei. Certo. Vou dar-te mais tempo desta vez. Mas quero que me entregue na semana que vem. Eu fiz que sim. E então ela disse: Laurel, se precisar conversar com alguém… Olhei para ela com uma expressão vazia. Eu dava aulas no Sandia, a sra. Buster explicou, com cuidado. May foi minha aluna de inglês no primeiro ano.
Não conseguia respirar direito. Comecei a ficar tonta. Achei que ninguém na escola saberia ou, pelo menos, que ninguém fosse falar sobre isso. Mas a sra. Buster olhava para mim como se eu tivesse a resposta de um mistério terrível. Eu não tinha. Finalmente, ela disse: May era uma garota especial. Engoli em seco. Sim, respondi. E saí. O corredor barulhento me transtornava. Queria fechar os olhos e fazer com que todas as vozes se dissipassem. Beijos.
Laurel»

In Ava Dellaira, Cartas de Amor aos Mortos, tradução de Alyne Azuma, Editora Seguinte (o Selo Jovem da Companhia das Letras), 2014, ISBN 978-856-576-541-1.

Cortesia da ESeguinte/JDACT