sábado, 22 de dezembro de 2018

A Irmandade Perdida. Anne Fortier. «Mas as duas continuavam vivas. Haviam sobrevivido à pestilência e agora também ao deserto. Dali em diante, as coisas só poderiam melhorar»

Cortesia de wikipedia e jdact

Norte de África
«(…) Sem dizer nada, Mirina a puxou mais para perto. Ela parecia feliz, continuou Lilli. Quis me abraçar, mas aí viu você e acho que teve medo de você ficar chateada com ela por me levar embora... então não levou. As duas passaram um tempo deitadas em silêncio. Sua antiga vida agora parecia muito distante. No entanto, a lembrança dos amigos e pessoas queridas que tinham perdido ainda era forte o suficiente para fazer ambas engasgarem e se calarem, assim como Mirina sabia que continuaria a sentir aquele fedor horrível da doença e da morte para sempre. Depois de sair do povoado, as duas haviam passado muito mal, com tremores e convulsões. Mirina tivera certeza de que iriam morrer; na verdade, quase se alegrara com isso. No entanto, aos poucos havia começado a melhorar, e Lilli também, embora a febre da irmã tivesse durado o suficiente para prejudicar os seus olhos. Durante várias terríveis manhãs, a menina havia acordado do seu sono agitado vendo cada vez menos, até por fim perder completamente a visão. O dia já vai raiar?, perguntara Lilli no último dia, olhando para o sol sem nada ver. Não falta muito, não, respondera Mirina com um sussurro, abraçando a irmã e soluçando enquanto a beijava repetidamente e a verdade dolorosa dava um nó na sua garganta.
Mas as duas continuavam vivas. Haviam sobrevivido à pestilência e agora também ao deserto. Dali em diante, as coisas só poderiam melhorar. Mirina recusava-se a pensar de outra forma. Tem certeza de que..., começou a perguntar Lilli, como fazia todas as noites. Só que dessa vez não terminou a frase, apenas mordeu o lábio e virou o rosto. Ambas sabiam que só haveria resposta para a grande questão de Lilli quando chegassem à cidade. Será que a Deusa da Lua conseguiria reverter os danos da febre e fazê-la recuperar a visão? Só a Deusa sabia. De uma coisa eu tenho certeza, falou Mirina, polindo a pulseira da mãe na túnica. Por baixo do insistente resíduo de fuligem, a serpente com cabeça de chacal de que ela tão bem se lembrava a encarava com os olhos enegrecidos. Mãe sentiria orgulho se visse agora. Lilli ergueu o rosto com uma expressão intrigada na direcção da irmã. Não acha que ela ficaria zangada comigo por estar inútil? Mirina a puxou mais para junto de si.
Inúteis são agricultores que não plantam e pastores que não pastoreiam. Lembre-se que é uma irmã. Uma irmã não precisa de olhos para ser útil, só de um sorriso e de um coração valoroso. Lilli deu um suspiro pesado e os seus ombros afundaram quando ela se recostou na bolsa das duas. Eu sou só sua meia-irmã. Talvez por isso não tenha a mesma coragem. Se o meu pai fosse o mesmo que o seu, talvez eu também tivesse um coração de caçadora. Shh! Os pais vêm e vão, mas a Terra permanece a mesma. Assim como não existe meio coração, não existe meia-irmã. É, pode ser, murmurou Lilli. Mas eu ainda não tenho certeza se um dia vou conseguir voltar a sorrir. Bom, pois eu tenho, retrucou Mirina, pousando o queixo sobre a cabeça da irmã. Lembre-se: quem enfrenta o leão se torna o leão. Nós vamos enfrentá-lo e vamos voltar a sorrir. Mas leões não sabem sorrir, balbuciou Lilli, abraçando a bolsa. Mirina deu um rugido e começou a mordiscar o pescoço da menina até as duas rirem. Então nós vamos ensinar». In Anne Fortier, A Irmandade Perdida, 2014, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978-858-041-543-0.
                                                                      
Cortesia de EArqueiro/JDACT