terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Memorial do Convento. José Saramago. «Durante todo esse dia, Baltasar duvidou se tivera tal conversa, ou se a sonhara, ou se, simplesmente, estivera num sonho de Blimunda. Olhava os grandes animais suspensos dos ganchos de ferro»

jdact

«(…) Outro se enganaria, mas não Baltasar, que sempre acorda à mesma hora, muito antes de nascer o sol, hábito inquieto de soldado, e fica alerta a ver retirar-se devagar a escuridão de cima das coisas e das pessoas, a sentir aquele grande alívio que levanta o peito é o suspiro do dia, o primeiro e impreciso traço grisalho das frinchas, até que um leve rumor acorda Blimunda e outro som começa e se prolonga, infalível, é Blimunda a comer o seu pão, e depois que o comeu abre os olhos, vira-se para Baltasar e descansa a cabeça sobre o ombro dele, ao mesmo tempo que pousa a mão esquerda no lugar da mão ausente, braço sobre braço, pulso sobre pulso, é a vida, quanto pode emendando a morte. Mas hoje não será assim. Um dia e outro dia perguntou Baltasar a Blimunda por que comia todas as manhãs antes de abrir os olhos, perguntou ao padre Bartolomeu Lourenço que segredo era este, ela respondeu-lhe uma vez que se acostumara a isso em criança, ele disse que se tratava de um grande mistério, tão grande que voar faria figura de pequena coisa, comparando. Hoje se saberá. Quando Blimunda acorda, estende a mão para o saquitel onde costuma guardar o pão, pendurado à cabeceira, e acha apenas o lugar. Tacteia o chão, a encherga, mete as mãos por baixo da travesseira, e então ouve Baltasar dizer, Não procures mais, não encontrarás, e ela, cobrindo os olhos com os punhos cerrados, implora, Dá-me o pão, Baltasar, dá-me o pão, por alma de quem lá tenhas, Primeiro me terás de dizer que segredos são estes, Não posso, gritou ela, e bruscamente tentou rolar para fora da enxerga, mas Sete-Sóis deitou-lhe o braço são, prendeu-a pela cintura, ela debateu-se brava, depois passou-lhe a perna direita por cima, e assim libertada a mão, quis afastar-lhe os punhos dos olhos, mas ela tornou a gritar, espavorida, Não me faças isso, e o grito tal que Baltasar a largou, assustado, quase arrependido da violência, Eu não te quero fazer mal, só queria saber que mistérios são, Dá-me o pão, e eu digo-te tudo, Juras, Para que serviriam juras se não bastassem o sim e o não Aí tens, come, e Baltasar tirou o taleigo de dentro do alforge que lhe servia de travesseira. Cobrindo o rosto com o antebraço, Blimunda comeu enfim o pão. Mastigava devagar. Quando terminou, deu um grande suspiro e abriu os olhos. A luz cinzenta do quarto amanheceu de azul para aqueles lados, assim pensaria Baltasar se tivesse aprendido a pensar coisas destas, mas melhor que pensar finezas que poderiam servir nas antecâmaras da corte ou nos palratórios das freiras, foi sentir o calor do seu próprio sangue quando Blimunda se virou para ele, os olhos agora escuros, e de repente uma luz verde passando, que importavam agora os segredos, melhor seria tornar a aprender o que já sabia, o corpo de Blimunda ficará para outra ocasião, porque esta mulher, tendo prometido, vai cumprir, e diz, Lembras-te da primeira vez que dormiste comigo, teres dito que te olhei por dentro, Lembro-me, Não sabias o que estavas a dizer, nem soubeste que estavas a ouvir quando eu te disse que nunca te olharia por dentro. Baltasar não teve tempo de responder, ainda procurava o sentido das palavras, e outras já se ouviam no quarto, incríveis, Eu posso olhar por dentro das pessoas. Sete-Sóis soergueu-se na enxerga, incrédulo, e também inquieto, Estás a mangar comigo, ninguém pode olhar por dentro das pessoas, Eu posso, Não acredito, Primeiro, quiseste saber, não descansavas enquanto não soubesses, agora já sabes e dizes que não acreditas, antes assim, mas daqui para o futuro não me tires o pão, Só acredito se fores capaz de dizer o que está dentro de mim agora, Não vejo se não estiver em jejum, além disso fiz promessa de que a ti nunca te veria por dentro, Torno a dizer que estás a mangar comigo, E eu torno a dizer que é verdade, Como hei-de ter a certeza, Amanhã não comerei quando acordar, sairemos depois de casa e eu vou-te dizer o que vir, mas para ti nunca olharei, nem te porás na minha frente, queres assim, Quero, respondeu Baltasar, mas diz-me que mistério é este, como foi que te veio esse poder, se não estás a enganar-me, Amanhã saberás que falo verdade, E não tens medo do Santo Ofício (maldito), por muito menos têm outros pagado, O meu dom não é heresia, nem é feitiçaria, os meus olhos são naturais, Mas a tua mãe foi açoitada e degredada por ter visões e revelações, aprendeste com ela, Não é a mesma coisa, eu só vejo o que está no mundo, não vejo o que é de fora dele, céu ou inferno, não digo rezas, não faço passes de mãos, só vejo, Mas persignaste-te com o teu sangue e fizeste-me com ele uma cruz no peito, se isso não é feitiçaria, Sangue de virgindade é água de baptismo, soube que o era quando me rompeste, e quando o senti correr adivinhei os gestos, Que poder é esse teu, Vejo o que está dentro dos corpos, e às vezes o que está no interior da terra, vejo o que está por baixo da pele, e às vezes mesmo por baixo das roupas, mas só vejo quando estou em jejum, perco o dom quando muda o quarto da lua, mas volta logo a seguir, quem me dera que o não tivesse, Porquê, Porque o que a pele esconde nunca é bom de ver-se, Mesmo a alma, já viste a alma, Nunca a vi, Talvez a alma não esteja afinal dentro do corpo, Não sei, nunca a vi, Será porque não se possa ver, Será, e agora larga-me, tira a perna de cima de mim, que me quero levantar.
Durante todo esse dia, Baltasar duvidou se tivera tal conversa, ou se a sonhara, ou se, simplesmente, estivera num sonho de Blimunda. Olhava os grandes animais suspensos dos ganchos de ferro antes de serem esquartejados, esforçava os olhos, mas não via mais que a carne opaca, esfolada ou lívida, e quando os pedaços e as postas se espalhavam nas bancadas ou eram atirados para os pratos das balanças, compreendia que o poder de Blimunda tinha mais de condenação que de prémio, porque o interior destes animais não era realmente um gosto para a vista, como não o seria o das pessoas que vêm à carne, nem o das que a vendem, ou cortam, ou carregam, que é o ofício de Baltasar. Aliás, viu na guerra o que está vendo aqui, que para averiguar o que dentro há é sempre preciso um cutelo ou um pelouro, um machado ou o fio duma espada, uma faca ou uma bala, então se rasga a frágil pele, ainda mais dorida virgindade, os ossos aparecem, e as tripas, e com este sangue não vale a pena benzer-nos, porque não é de vida, sim de morte». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT