terça-feira, 25 de dezembro de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «No meio daquele temível silêncio, uma voz se ergueu das primeiras filas: irmão, como vos permitis? Todos se viraram para Bernard, de rosto arroxeado…»

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O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Um dos dois dominicanos levantou-se de repente e atravessou o claustro com passadas largas, direito ao magíster. Os alunos abriram alas para lhe darem passagem, observando-o estarrecidos. Raramente alguém pedia licença para interromper uma lição. Nervoso com semelhante afronta, Suger preparou-se para investir contra aquele frade impertinente. Tinha já preparado uns insultos que lhe fariam eriçar os cabelos como os pelos de um gato, mas assim que o reconheceu mordeu os lábios. Não se tratava de um religioso qualquer. Era Rolando de Cremona, o teólogo italiano! Frei Rolando parou a poucos passos dele. Traços afilados e olhos de uma cor metálica atravessados por uma raiva calculada. Com o ímpeto de um cavaleiro que lança um olhar de desafio, pronunciou uma palavra única: Aristóteles! Foi o bastante para mergulhar os assistentes no mutismo.
No meio daquele temível silêncio, uma voz se ergueu das primeiras filas: irmão, como vos permitis? Todos se viraram para Bernard, de rosto arroxeado, e olhos fixos no dominicano. Ide-vos embora!, continuou o rapaz. A ciência médica não compete aos homens da Igreja. Suger ordenou-lhe que se calasse, mas frei Rolando ameaçou-o com a voz e com o carisma. É verdade, confirmou o dominicano, sem se dirigir a ninguém em particular. Nós, homens da Igreja, abstemo-nos de praticar a ciência médica. É-nos proibido verter sangue humano, mesmo que o objectivo seja curativo. A sua voz tinha um não sei quê de lenhoso, como o sopro do vento numa árvore oca. Mas é nosso dever apagar das mentes a sombra da dúvida. Desobedecendo pela segunda vez ao seu magíster, Bernard continuou a polemizar: que sombra? Que dúvida? Até os teólogos estudam Aristóteles. Frei Rolando parecia esperar aquela pergunta. Aristóteles escreveu coisas admiráveis e, no entanto, a sua mente pagã levou-o a cometer erros. Dirigiu o olhar para Suger. Erros que o vosso magíster difunde como verdades absolutas. Erros que saem da sua boca como blasfémias.
Suger fechou os punhos como que à procura de algum argumento de defesa. A acusação que lhe fora feita era demasiado grave, ensinar o aristotelismo era proibido pela Igreja. E sob o chicote dialéctico daquele hábil dominicano, cada tentativa para se desculpar iria virar-se seguramente contra ele. Então, magíster, não dizeis nada?, desafiou-o frei Rolando. Preferis continuar a ser defendido pelos vossos discípulos? Suger abriu os braços, fingindo render-se. Reverendo padre, se tivéssemos de nos medir em matéria teológica, vós levaríeis de certeza a melhor. Eu, no entanto, não sou teólogo, sou médico. Se entendeis mover uma acusação contra a minha docência, isso deverá ser feito na presença de uma autoridade competente: a corporação dos professores de Paris. Corporação? Frei Rolando abanou a cabeça. Eu não reconheço a autoridade de nenhuma corporação, só a do padre Philippus de Noyon, o chanceler do Capítulo. Ele é o único e verdadeiro tutor do Studium.
Chegado aqui, Suger não podia recuar. Muito bem, exclamou num tom altivo. Então apressemo-nos, zombou o dominicano, fixando o seu confrade. Compareceremos imediatamente diante de Philippus Cancellarius. Estamos ainda a tempo de ser recebidos em audiência». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
                                                                                                              
Cortesia do CdoAutor/JDACT