quarta-feira, 1 de setembro de 2021

A Herança Messiânica. Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin. «Esta é uma situação extraordinária, talvez única em todo o espectro da pesquisa histórica moderna. Em todas as demais esferas da investigação histórica, novos dados são admitidos»

Cortesia de wikipedia e jdact

O malogro dos estudos bíblicos

«(…) A despeito dos problemas actuais de superpopulação, o Vaticano ainda é capaz de impor restrições ao controle da natalidade e ao aborto, por razões não sociais ou morais, mas teológicas. Um incêndio causado por um raio em York Minster ainda pode ser visto como sinal da ira divina, por causa da nomeação de um bispo duvidoso. As afirmações ambíguas desse bispo sobre aspectos da biografia de Jesus ainda podem ultrajar pessoas que crêem que o seu salvador foi concebido numa virgem pelo próprio Espírito Santo e se recusam a acreditar em qualquer outra coisa. Em comunidades dos Estados Unidos, grandes obras literárias podem ser banidas de escolas e bibliotecas, ou até, eventualmente, queimadas, por contestarem descrições bíblicas tradicionais, enquanto uma nova corrente do fundamentalismo é efectivamente capaz de influenciar a política do país graças ao apoio de milhões de pessoas ansiosas por se extasiar num céu bastante parecido com a Disneylândia. Por menos ortodoxa que seja a sua apresentação de Jesus, A última tentação de Cristo, de Kazantzakis, é uma obra apaixonadamente religiosa, apaixonadamente devota, apaixonadamente cristã. Isso não impediu, porém, que o romance fosse proibido em muitos países, entre os quais a Grécia, pátria do autor, e que o próprio Kazantzakis fosse excomungado. Entre as obras não ficcionais, The Passo ver Plot, de Schonfield, embora tenha vendido enormemente, provocou muita indignação. Em 1983, David Rolfe, a serviço da London Weekend Television e do Channel 4, começou a planear um documentário em três partes intitulado Jesus: the Evidence. A série não tomava nenhuma posição própria, não endossava nenhum ponto de vista particular. Pretendia simplesmente dar uma visão do campo dos estudos sobre o Novo Testamento e estimar o valor das várias teorias propostas. No entanto, antes mesmo que o projecto começasse a ser executado, grupos de pressão britânicos já faziam lobby para que fosse suspenso. Quando a série foi concluída, em 1984, teve de ser exibida em sessão privada para vários membros do Parlamento, antes de ter a sua transmissão liberada. Depois, embora as críticas subsequentes a tenham considerado perfeitamente equilibrada e incontestável, clérigos da Igreja da Inglaterra foram a público declarar que estariam de prontidão para atender a quaisquer membros de sua congregação perturbados pelo programa.

A intenção de Jesus: the Evidence fora levar ao conhecimento do público leigo alguns avanços feitos nos estudos do Novo Testamento. Afora The Passo ver Piot, praticamente nada desses estudos chegara à consciência popular. Umas poucas obras, como Jesus the Maoidan e The Gnostic Gospeis, tinham sido amplamente resenhadas, discutidas e difundidas, mas sua leitura se limitara em grande parte a pessoas especialmente interessadas no tema. A maior parte do trabalho realizado nos últimos anos só atingiu especialistas. Em grande medida, esses trabalhos são também escritos especificamente para especialistas, sendo praticamente impenetráveis para o leitor não iniciado. No que diz respeito ao grande público, bem como às igrejas que atendem a esse público, tudo se passa como se as obras acima citadas jamais tivessem sido produzidas. A versão de George Moore de que Jesus teria sobrevivido à crucificação fazia eco a uma tese sustentada não apenas por algumas das mais antigas heresias, mas também pelo Corão, sendo portanto amplamente aceita no islão e no mundo islâmico. No entanto, essa mesma afirmação, quando divulgada por Robert Graves e depois pelo dr. Schonfield em The Passo ver Piot, provocou tanto escândalo e incredulidade como se isso jamais tivesse sido aventado antes. No campo dos estudos sobre o Novo Testamento, é como se cada nova descoberta, cada nova afirmação, fosse anulada com a mesma rapidez com que é feita. Cada uma tem de ser constantemente reapresentada, só para desaparecer novamente. Muita gente reagiu a certas afirmações do nosso próprio livro como se The Passo ver Piot ou King Jesus, de Graves, ou The Brook Kerith, de Moore, ou até o próprio Corão, nunca tivessem sido escritos.

Esta é uma situação extraordinária, talvez única em todo o espectro da pesquisa histórica moderna. Em todas as demais esferas da investigação histórica, novos dados são admitidos. Podem ser contestados. Pode haver tentativas de suprimi-los. Podem também ser digeridos e assimilados. Mas pelo menos as pessoas sabem o que já foi descoberto, o que já foi dito vinte ou setenta anos atrás. Há uma espécie de progresso genuíno, mediante o qual velhas descobertas e teses fornecem base para novas descobertas e teses, dando origem a um corpo de conhecimento. Teorias revolucionárias podem ser aceitas ou descartadas, mas pelo menos se toma conhecimento delas e do que as precedeu. Existe um contexto». In Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, A Herança Messiânica, 1994, Editora Nova Fronteira, 1994, ISBN 978-852-090-568-5.

Cortesia de ENFronteira/JDACT

Michael Baigent, Richard Leigh, Henry Lincolin, JDACT, Literatura, Religião, Crónica,