segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Memorial do Convento. José Saramago. «Ao outro dia vieram a festejar a chegada, e a conhecer a nova parenta, Inês Antónia, irmã de Baltasar, e o marido, que afinal se chama Álvaro Diogo»



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«(…) Blimunda olhou para Baltasar e ambos viram no olhar do outro o mesmo pensamento, a passarola desfeita pelo chão, o padre Bartolomeu Lourenço a sair o portão da quinta, montado na mula, a caminho da Holanda. Ficava no ar a mentira de não ter Blimunda costela de cristã-nova, se mentira era, quando destes dois sabemos o pouco caso que fazem de tais casos, por salvar maiores verdades se mente às vezes. O pai disse, Vendi a terra que tínhamos na Vela, não que a vendesse mal, treze mil e quinhentos réis, mas vai fazer-nos falta, Então por que a vendeu, Foi el-rei quem a quis, a minha e outras, E para que as quis el-rei, Vai mandar construir ali um convento de frades, não ouviste falar disso em Lisboa, Não senhor, não ouvi, Disse aí o vigário que foi por causa duma promessa que el-rei fez, se lhe nascesse um filho, quem agora pode ganhar bom dinheiro é o teu cunhado, vão precisar de pedreiros. Tinham comido feijões e couves, apartadas as mulheres e de pé, e João Francisco Sete-Sóis foi à salgadeira e tirou um bocado de toucinho, que dividiu em quatro tiras, pôs cada uma na sua fatia de pão e distribuiu em redor. Ficou a olhar alerta para Blimunda, mas ela recebeu a sua parte e começou a comer tranquilamente Não é judia, pensou o sogro. Marta Maria também olhara, inquieta, depois encarou o marido com severidade, como se estivesse a recriminá-lo pela astúcia. Blimunda acabou de comer e sorriu, não adivinhava João Francisco que ela teria comido o toucinho mesmo que fosse judia, é outra a verdade que tem de salvar.

Baltasar disse, Tenho de procurar trabalho, e Blimunda também irá trabalhar, não podemos ficar às sopas, Para Blimunda não haja pressa, quero que ela fique aqui em casa por uns tempos, quero conhecer a minha filha nova Está bem, mãe, mas eu preciso arranjar trabalho, Com essa mão a menos, que trabalhos farás, Tenho o gancho, pai, que é uma boa ajuda quando se está habituado, Será, mas cavar não podes, ceifar não podes, rachar lenha não podes, Posso tratar de animais, Sim, isso podes, E também posso ser carreiro para segurar a soga basta o gancho, a outra mão fará o resto, Filho, estou muito contente por teres voltado, E eu já devia ter voltado, pai. Nessa noite Baltasar sonhou que andava a lavrar com uma junta de bois todo o alto da Vela e que atrás dele ia Blimunda espetando no chão penas de aves, depois estas começaram a agitar-se como se fossem levantar voo, capaz a terra de ir com elas, surgiu o padre Bartolomeu Lourenço com o desenho na mão a apontar o erro que tinham cometido, vamos voltar ao princípio, e a terra apareceu outra vez por lavrar, estava Blimunda sentada e dizia-lhe, Vem-te deitar comigo, que já comi o meu pão. Era ainda noite fechada, Baltasar acordou, puxou para si o corpo adormecido, morna frescura enigmática, ela murmurou o nome dele, ele disse o dela, estavam deitados na cozinha, sobre duas mantas dobradas, e silenciosamente, para não acordarem os pais que dormiam na casa de fora, deram-se um ao outro.

Ao outro dia vieram a festejar a chegada, e a conhecer a nova parenta, Inês Antónia, irmã de Baltasar, e o marido, que afinal se chama Álvaro Diogo. Trouxeram os filhos, um de quatro anos, outro de dois, só o mais velho vingará, porque ao outro hão-de levá-lo as bexigas antes de passados três meses. Mas Deus, ou quem lá no céu decide da duração das vidas, tem grandes escrúpulos de equilíbrio entre pobres e ricos, e, sendo preciso, até às famílias reais vai buscar contrapesos para pôr na balança, a prova é que, por compensação da morte desta criança, morrerá o infante Pedro quando chegar à mesma idade, e porque, querendo Deus, qualquer causa de morte serve, a que levará o herdeiro da coroa de Portugal será o tirarem-lhe a mama, só a infantes delicados isto aconteceria, que o filho de Inês Antónia, quando morreu, já comia pão e o mais que houvesse. Equilibrada a contagem, desinteressa-se Deus dos funerais, por isso em Mafra foi só um anjinho a enterrar, como a tantos outros sucede, mal se dá pelo acontecimento, mas em Lisboa não podia ser assim, foi outra pompa, saiu o infante da sua câmara, metido no caixãozito que os conselheiros de Estado levavam, acompanhado de toda a nobreza, e ia também el-rei, mais os irmãos, e se ia el-rei seria por dor de pai, mas principalmente por ser o falecido menino primogénito e herdeiro do trono, são as obrigações do protocolo, vieram descendo até ao pátio da capela, todos de chapéu na cabeça, e quando o caixão foi colocado nas andas que o haviam de transportar, descobriu-se el-rei e pai, e, tendo-se descoberto e coberto outra vez, voltou para o paço, são as desumanidades do protocolo. Lá seguiu o infante sozinho para S. Vicente de. Fora, com o seu luzido acompanhamento; sem pai nem mãe, à frente o cardeal, depois a cavalo os porteiros da maça, os oficiais da casa e títulos, a seguir iam os clérigos e moços da capela, menos os cónegos, que esses foram esperar o corpo a S. Vicente, todos de tochas acesas nas mãos, e logo a guarda em duas alas, adiante os seus tenentes, e agora sim, vem aí o caixão, coberto por uma riquíssima tela encarnada, que também cobre o coche de Estado, e atrás do caixão segue o duque de Cadaval velho, por ser mordomo-mor da rainha, cuja, se tem entranhas de mãe, estará chorando o seu filho, e, por ser dela estribeiro-mor, vai também o marquês das Minas, pelas lágrimas se lhe contará o amor, não pelos títulos que a servem, e os tais panos, mais os arreios e cobertas dos machos, ficarão para os frades de S. Vicente como é antigo costume, e pela serventia dos machos, que são dos ditos frades, foram pagos doze mil réis, é um aluguer como outro, não estranhemos, que machos não são os humanos, mesmo machos sendo, e também os alugam, e tudo isto junto faz pompa, circunstância e solenidade, pelas ruas por onde o funeral passa estão em alas os soldados, mais os frades de todas as ordens, sem excepção, além dos mendicantes como donos da casa que receberá o menino morto de desmame, privilégio que os frades muito merecem, como mereceram o convento que vai ser construído na vila de Mafra, onde há menos de um ano foi enterrado um rapazito de quem não chegou a averiguar-se o nome e que levou acompanhamento completo, iam os pais, e os avós, e os tios, outros parentes, quando o infante Pedro chegar ao céu e souber destas diferenças, vai ter um grande desgosto». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,