segunda-feira, 6 de setembro de 2021

Memorial do Convento. José Saramago. «Ficas a ser minha filha, Sim, minha mãe, Juras então que não és judia nem és cristã-nova, Juro, meu pai, Sendo assim, bem-vinda sejas à casa dos Sete-Sóis»

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«(…) Regressou o filho pródigo, trouxe mulher, e, se não vem de mãos vazias, é porque uma lhe ficou no campo de batalha e a outra segura a mão de Blimunda, se vem mais rico ou mais pobre não é coisa que se pergunte, pois todo o homem sabe o que tem, mas não sabe o que isso vale. Quando Baltasar empurrou a porta e apareceu à mãe, Marta Maria, que é o seu nome, abraçou-se ao filho, abraçou-o com uma força que parecia de homem e era só do coração. Estava Baltasar com o seu gancho posto, e era um dó de alma, uma aflição ver sobre o ombro da mulher um ferro torcido em vez da concha que os dedos fazem, acompanhando o contorno do que cingem, amparo que o será tanto mais, quanto mais se amparar. O pai não estava em casa, andava no trabalho do campo, a irmã de Baltasar, única, casou-se e já tem dois filhos, chama-se Álvaro Pedreiro o homem dela, puseram-lhe o ofício no nome, caso não raro, que razões teria havido, e em que tempos, para que a alguns tivesse sido dado, ainda que só de alcunha, o apelido de Sete-Sóis. Não passara Blimunda de entreportas, à espera da sua vez, e a velha não a via, mais baixa que o filho, além de estar a casa muito escura. Moveu-se Baltasar para deixar ver Blimunda, era o que ele pensava, mas Marta Maria viu primeiro o que ainda não tinha visto, talvez apenas pressentido no frio desconforto do ombro, o ferro em vez da mão, porém ainda distinguiu o vulto à porta, pobre mulher, dividida entre a dor que a mutilava naquele braço e a inquietação doutra presença, de mulher também, e então Blimunda afastou-se para que cada coisa acontecesse a seu tempo e cá de fora ouviu as lágrimas e as perguntas, Meu querido filho, como foi, quem te fez isto, o dia ia escurecendo, até que Baltasar veio à porta e a chamou, Entra, acendia-se dentro de casa uma candeia, Marta Maria ainda soluçava de mansinho, Minha mãe, esta é a minha mulher, o nome dela é Blimunda de Jesus.

Deveria isto bastar, dizer de alguém como se chama e esperar o resto da vida para saber quem é, se alguma vez o saberemos, pois ser não é ter sido, ter sido não é será, mas outro é o costume, quem foram os seus pais, onde nasceu, que idade tem e com isto se julga ficar a saber mais, e às vezes tudo. Com a última luz do dia chegara o pai de Baltasar, de seu nome João Francisco, filho de Manuel e Jacinta, aqui nascido em Mafra, sempre nela vivendo, nesta mesma casa à sombra da igreja de Santo André e do palácio dos viscondes, e, para ficar a saber-se mais alguma coisa, homem tão alto como o filho, agora um tanto curvado pela idade e também pelo peso do molho de lenha que metia para dentro de casa. Desajoujou-o Baltasar, e o velho encarou com ele, disse, Ah, homem, deu logo pela mutilação, mas dela não falou, apenas isto, Paciência, quem foi à guerra, depois olhou para Blimunda, compreendeu que era a mulher do filho, deu-lhe a mão a beijar, daí a pouco estavam a sogra e a nora a tratar da ceia enquanto Baltasar explicava como tinha sido aquilo da batalha, a mão cortada, os anos de ausência, mas calando que estivera quase dois anos em Lisboa sem dar notícias, quando as primeiras e únicas só aqui tinham sido recebidas há poucas semanas, por carta que o padre Bartolomeu Lourenço ainda escrevera, enfim a pedido de Sete-Sóis, dizendo que estava vivo e ia voltar, ai a dureza de coração dos filhos, que estão vivos e fazem dos seus silêncios morte. Ficava por dizer quando tinha casado com Blimunda, se durante o tempo de soldado, se depois dele, e que casamento era esse, qual a eira e qual a beira, mas os velhos ou não se lembravam de perguntar ou preferiam não saber, subitamente conscientes do estranho ar da rapariga, com aquele cabelo ruço injusta palavra que a cor dele é a do mel, e os olhos claros, verdes, cinzentos, azuis quando lhes dava de frente a luz, e de repente escuríssimos, castanhos de terra, água parda, negros se a sombra os cobria ou apenas aflorava, por isso ficaram todos calados, era a altura de começarem todos a falar, Não conheci o meu pai, acho que já tinha morrido quando nasci, minha mãe foi degredada para Angola por oito anos, só passaram dois, e não sei se está viva, nunca tive notícias, Eu e Blimunda vamos ficar a viver aqui em Mafra, a ver se arranjo uma casa, Não vale a pena procurares, esta dá para os quatro, já cá viveu mais gente, e por que é que a sua mãe foi degredada, Porque a denunciaram ao Santo Ofício (maldito), Pai, Blimunda não é judia nem cristã-nova, isto do Santo Ofício (maldito), do cárcere e do degredo foi coisa de visões que a mãe dela dizia que tinha, e revelações, e que também ouvia vozes, Não há mulher nenhuma que não tenha visões e revelações, e que não ouça vozes, ouvimo-las o dia todo, para isso não é preciso ser feiticeira, Minha mãe não era feiticeira, nem eu o sou, Também tens visões, Só as que todas as mulheres têm, minha mãe, Ficas a ser minha filha, Sim, minha mãe, Juras então que não és judia nem és cristã-nova, Juro, meu pai, Sendo assim, bem-vinda sejas à casa dos Sete-Sóis, Ela já se chama Sete-Luas, Quem lhe pôs o nome, O padre que nos casou, Padre que tal lembrança tem, não costuma ser fruta que se dê nas sacristias, e com esta todos riram, uns sabendo mais, outros rixentos». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT

Leituras, JDACT, José Saramago, O Saber, A Arte, Nobel da Literatura,