segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Por Amor a uma Mulher. Domingos Amaral. «Éramos quatro e já a noite tinha caído quando saímos pela porta das muralhas de Viseu, a pé e forçando-nos a um rigoroso silêncio»

 

jdact

NOTA: Afonso Henriques, nascido em 1109, filho do conde Henrique e de dona Teresa, neto de Afonso VI de Leão e primo direito de Afonso VII. Tem uma relação amorosa com Elvira Gualter, da qual nasceram duas filhas, Urraca e Teresa Gualter; e outra com Chamoa Gomes, de quem tem dois filhos, Fernando e Pedro Afonso. Será reconhecido com rei de Portugal, em 1143, em Zamora.

1126

Viseu, Sexta-Feira Santa, Abril de 1126

«(…) As mouras desataram a rir com aquela indirecta confissão, mas entretanto Zulmira chamou-as e levantaram-se todas. Em voz baixa, para a mãe não a escutar, Zaida prometeu às galegas que lhes mostraria o livro proibido quando fossem a Coimbra, acrescentando: Não é tão belo como As Mil e Uma Noites, mas aprendem-se umas coisas muito úteis. Até muito tarde na vida não fazia ideia de que as mulheres falavam assim entre elas. Seja como for, a Maria tinha razão, sempre avisou a Chamoa, sempre lhe disse que tivesse mais cuidado, não se desse tanto aos homens. Ela é que não a ouviu. As pessoas são como são, não mudam só porque alguém lhes diz que tenham cuidado.

Éramos quatro e já a noite tinha caído quando saímos pela porta das muralhas de Viseu, a pé e forçando-nos a um rigoroso silêncio. Se nos vissem ali, à procura de diversão numa Sexta-Feira Santa, seríamos repreendidos pelo prior Teotónio. Ainda para mais, entre nós estava o príncipe, que se queria um exemplo para os populares. Se o distinguissem, enrolado num manto e de capuz a cobrir-lhe a cabeça, decerto pensariam que ia às soldadeiras, prazer compreensível noutra noite, mas proibido naquela. Porém, há meses que Afonso Henriques, Gonçalo Sousa, o Braganção e eu não estávamos juntos e o apelo da companhia e da farra fora mais forte do que a obrigação de recato. Mesmo assim, só começámos a falar mais alto depois de sairmos da cidade, um pouco antes de o príncipe parar de súbito. Na beira da estrada, no escuro da noite, viam-se os vagos contornos de um penedo granítico, talvez a dez metros. Gonçalo admirou-se mais uma vez com o olho certeiro do príncipe. Livra, que morcego!

Encostado à grande pedra estava um vulto, sentado no chão. Afonso Henriques deve-o ter reconhecido, pois avançou sem receios e disse o nome dele. Ramiro olhou-o com estranheza, como se visse um fantasma. Na sua mão, estava o bonito punhal de seu pai, Paio Soares, com uma pérola no topo do cabo. Pressentindo a desorientação que o consumia, o príncipe aconselhou-o: Não cismeis tanto... O outro continuou a olhar para o vazio. Afonso Henriques ajoelhou em frente dele e o seu tom de voz tornou-se persuasivo. Seja o que for que vos aconteceu de terrível, daqui a dez anos nem vos ides lembrar. Ramiro franziu a testa, como se tivesse tido uma revelação inesperada. Depois, concordou com um aceno de cabeça e colocou a arma no cinto, enquanto Afonso Henriques perguntava: Sofreis por honra ou por mulher? A tristeza do outro levou-o a concluir que se tratava de mal de amor. Nenhuma dama, por mais bela que seja, é a única no mundo, disse o príncipe.

Ramiro baixou os olhos, demasiado dorido para responder. Quereis vir connosco? Vamos à estalagem, informou Afonso Henriques. O Braganção protestou, não estava à vontade com Ramiro. Talvez por isso, este recusou e disse que iria para casa. Afonso Henriques estendeu-lhe o braço,ajudando-o a levantar-se, e acrescentou: Depois da Páscoa, podias vir a Lamego connosco, às canas. Ramiro garantiu que o pai não o deixaria e depois despediu-se e regressou ao castelo. Os quatro amigos marcharam então para a estalagem, um pequeno edifício a cerca de cem passos, com umas estrebarias junto, e onde um archote ardia sobre a porta. Dois cavaleiros-vilões, sentados numa das mesas, saudaram o príncipe, continuando à conversa com duas soldadeiras, cujos decotes abertos mostravam os peitos redondos. Pareciam gostosas, pelo menos aos olhos do Braganção, que em voz alta as gabou. Depois de se sentarem, o afoito Gonçalo fez um sinal a uma delas, ordenando-lhe que se aproximasse. Morena e de cabelos longos, mas de nariz pontiagudo e feia, avisou que os cavaleiros-vilões tinham precedência. O Braganção ainda protestou, mas Afonso Henriques aconselhou-o a ser paciente. Devem ter vindo para as justas de domingo. São dos nossos, não os agastemos. Contrariado, o Braganção resmungou: Nunca somos bem tratados... Sois como vossa mãe, que nos atirou quase para fora da muralha!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.

Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT

JDACT, Domingos Amaral, A Arte, Literatura,