terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «… de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?»

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O Rei de Marfim

«(…) Para onde mais podia ela ir, senão ali ficar na cela em que recolheu o último bafo da mãe?..., tudo aí começou. Tânger foi o descalabro de todos nós..., do cativeiro do infante, da morte prematura do rei na menoridade do filho, do rebentar dessa semente funesta da malquerença contra o regente meu pai..., porque não se cansava a tia Filipa de falar nisso?, ainda lhe doía a morte do pai, agora avivada pela da mãe?, raiva, ódio, desejo de vingança?..., que outra coisa havias tu e tua irmã de fazer senão afagar-lhe o ombro, abraçá-la, tomar-lhe as mãos, a consolá-la à tia Filipa, irmã de vossa mãe?..., nunca te haveria de esquecer o olhar dela molhado a erguer-se para ti, para Joana: devereis saber, meus sobrinhos..., e as palavras se lhe mergulhavam atrás a revolver no poço do tempo... bom monteiro e caçador, não há que ver, como todos os varões dessa família ..., eu sei, eu sei, minha senhora tia, intervinhas tu. Meu bisavô João até escreveu aquele livro ..., sim, e nosso avô Duarte, lembrava Joana, compôs também um outro ..., assim é. E este nosso avô Pedro ...

É isso, sim, meus sobrinhos, mas particularmente do que vosso avô Pedro mais gostava era de ocupar suas horas..., com que minúcia repartia cada tarefa, cada obrigação pelas horas do dia!..., deixa-me ver se adivinho, deixa ..., diz, meu sobrinho. Do que ele mais gostava era de ocupar suas horas metido na livraria ..., a estudar ..., completava tua irmã. E a verter do latim o livro dos ofícios de Marco Túlio Cicerão..., costumava dizer que cada livro era uma janela do universo, mas acrescentava pensativo: Mais se aprende dos costumes a índole dos homens do que pela leitura de grossos volumes, homem sábio, meu pai! Arrumado nas ideias e na acção, o cuidado que punha em mandar abrir valas para enxugar os pântanos do Mondego..., bom administrador de sua casa como dos negócios da república, conhecedor como poucos da arte da guerra, perito do regimento da corte..., que saudades as minhas! Quando ele aparecia à porta da câmara cansado do estudo, meus meninos, desembaraçava-me eu do colo da ama e corria a estender-lhe os braços para o alto, ele avançava no seu andar manso, dobrava-se, içava-me a beijar-me..., a mim, enquanto sentia aquela barba ruiva arranhar-me a cara, semelhava-me estar a ver do cimo da torre de um castelo a sala e as pessoas lá em baixo muito pequenas..., depois sentava-se..., quantas vezes o fazia, com os filhos em roda e a minha mãe ao lado, a recordar as suas viagens por essa Europa fora..., de seu jeito, bem diferente, mas contava a minha aia e eu trazia os ouvidos cheios de histórias maravilhosas: que é dele o cavaleiro louro de olhos azuis?, lá vai cavalgando em seu corcel de prata e de arreios de ouro, seguem-no atrás os doze companheiros, Cristo mai-los discípulos, como fantasmas caminham sobre as montadas tarrenego mafarrico, não parecem desta vida, bestas do apocalis a correr campos de turcos, ladeiam já as margens do termodonte no país das amazonas, atravessam desertos em cima de dromedários e chegam à Noruega onde os dias não luzem mais do que quatro horas, passam Babilónia, a província dos centauros, a terra dos alarves em que os filhos são sepultura dos pais, nas serranias da arménia vêem a arca de noé, por damasco descem à Terra Santa, ao Egipto, onde assistem ao suplício de um mouro que por ter dado uma bofetada num peregrino é empalado numa vara afiada que lhe saía pela boca..., visitam a região dos gigantes, dos homens com cabeça de cão, dos pigmeus que têm guerra com as aves... em Meca admiram, suspenso no ar por seis pedras imãs, o moimento de mafoma... e entram no paraíso terreal, que é banhado por quatro rios: do Tigre, que corre por território dos assírios, saem ramos de ciprestes e de oliveiras; das ondas do Eufrates erguem-se palmeirais agitados pelo vento; do Géon, que circunda o chão da Etiópia, surgem homens cor de bronze; do Físon, que rodeia a região de Hevilath, onde nasce o ouro e se encontra o Bdélio e a Cornalina, esvoaçam papagaios coloridos em seus ninhos pelas águas... » In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,