quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

A Esmeralda Partida. Fernando Campos. «Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras…»

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O Rei de Marfim

«(…) Por areias e papirais marginam o rio sagrado e junto de frescas nascentes avistam enfim, a brilhar ao sol, o palácio das portas de cedro e janelas de cristal, e ante o trono encastoado de safiras ajoelham e beijam a mão do Preste João das Índias... ai menina! Dizem que no regresso lutou com os gigantes de um só olho e com a dextra alçando a cruz da espada fez frente aos enleios da feiticeira circe... o infante, minha dona, não é criatura deste mundo ... Tu ouvias, calado, a cismar, pensavas já, talvez, que um dia haverias de enviar teus embaixadores a esse rei cristão das terras distantes... mas a tua tia Filipa ali estava a falar vestida de negro, cabelo negro, o poço dos olhos negrume de água salobra fetos e salamandras... saíra à mãe, ao sangue de Urgel... sua irmã Isabel, a tua mãe, dizia ela que era branca, esguia, loira, tu não chegaste a conhecê-la...

Era verdade, senhor meu pai? Ele sorria entre sisudo que sempre se mostrava. Não, não era verdade, invenções de simples e crédulos, de servos e gente do povo, de algum jogral cego a cantar fadários nos arcos da rua Nova, com seu espantado respeito e maravilhamento, como se estivessem a imaginar seres fabulosos, cosiam lá entre si ao que ouviam e iam passando de boca a orelha acrescentamentos e remendos de fantasia. Não, saíra do reino por fins de Junho de vinte e cinco, depois de ter ido à corte tomar a bênção do rei seu pai e despedir-se do irmão Duarte, que ajudava já nas canseiras da governação, entrara em Castela por alfaiates e ao fim de três jornadas atingia Ciudad Rodrigo, subira até Valladolid, corte de poetas, a ver em seu paço o rei João primo co-irmão, longas caminhadas de paladinos...

Meu pai falava mas o conto por vezes era completado, em hora de recreio, na roda de meus irmãos Pedro e Jaime, com cores mais vivas e a rudeza de palavras não dizidoiras, a brejeirice dos trovadores, ouvidas aos cavaleiros sem a presença feminina... fungavam risotas ao pronunciá-las, eu até gostava... porque é que a aia as queria esconder dos meus ouvidos? Não as declaravam diante das damas nos serões reais?..., com seus quarenta cavaleiros e homens de pé, a carriagem bem aparelhada, seguia o infante pelas sendas do vento e da água, por florestas cerradas, vales descobertos, desfiladeiros cortados no cerne de montanhas de lobo, urso e javali, descansando no desconforto de albergues ermos, em catraias de portelas onde sob o cascalho esfarelado e nas frinchas das penhas o tojo rasteiro, a urze, a carqueja, o espinheiro, enregelados da nortada ou queimados do Suão, sugam a última lentura da terra. Não, não se tratava de peregrinação de cavaleiros da Távola Redonda em demanda do Santo Graal nem desafio de magriços e seus companheiros para desagravo de damas... pelo caminho iam conversando: Quando chegares a Inglaterra, infante, receberás a garroteia, estou em crer... Cala-te, Álvaro Vaz, também terás a tua, como teu pai». In Fernando Campos, A Esmeralda Partida, 1995, Difel, Lisboa, 2008, ISBN 978-972-290-330-1.

Cortesia de Difel/JDACT

D. João II, JDACT, Literatura, Saber, Fernando Campos,