domingo, 11 de dezembro de 2022

A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV). Mário Martins. «Os poetas dos cancioneiros desavinham-se entre si, em pequenas escaramuças verbais, donde a sinceridade às vezes batia as asas»

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Sátiras contra os Favoritas e Magnates

«(…) No conflito entre Sancho II e o conde de Bolonha, alguns alcaides hesitavam e vendiam os castelos, sob qualquer pretexto. Assim fez Fuão, que tinha mantimentos e entregou o castelo con mínguas que avia. Não atacam um homem de tal coragem. À falta de jornais, estes poetas exprimiam a consciência do povo. Faziam troça dos arranjistas, como faziam troça dos adiantados novatos ou traidores, encarregados de governar e defender as comarcas fronteiriças. Os ricos-homens andavam também na boca do mundo trovadoresco. Gil Pérez Conde troça dum ricome, que em tudo mudou. Até de valente se tornou cobarde, sem aguentar as lazeiras dos tempos idos, quando nada lhe metia medo. Noutro lugar, investe contra um magnate que tira e não dá. Nuno Fernandez Torneol cita um rico-homem mentireiro a quem falara no caminho de Valhadolide para Toledo. Até à tropa dava ele mentiras por sa soldada.

Entra certo rico-homem em Segóvia e logo baixa o preço das coisas, de dez soldos para cinco, resmunga Pero da Ponte. Que remédio, pois era o rico-homem a comprar! Outros eram ignorantes, mandriões, avarentos e ninguém os queria para nada. Só pensavam em ajuntar, como certo rico-homem que o mesmo Pero da Ponte imagina pôr à venda, sem ninguém lhe pegar. E porquê? Ricom’, que sabedes fazer? E ele respondia: Coisa nenhuma (ren), a não ser comprar herdades, se alguém mas vende. E aqui temos nós um protesto contra certos latifundiários, para quem toda a terra era pouca, por muita que fosse.

Longo e de grande significado social é este género de cantigas contra os homens do poder e do dinheiro, luta de raízes bem medievais, a partir da pregação nos púlpitos. E o estendal alargava-se. Certo rico-homem não pagava os serviços duma pessoa de família. Outro contrariava o casamento da filha, dona Urraca Abril. Outro ainda não conseguiu ter filhos. Seria melhor casar com uma tendeira de nome Coelha, para ter um filho cada mês. E não falamos dos comendadores. A um deles acusavam-no de ter feito perder a terra a um escudeiro. Outro andava metido com a mulher confiada à sua protecção. Seria falsificar a história generalizar tais factos. As sátiras, as caricaturas e os panfletos ajudam a fazer a história. Mas não bastam, só por si. Concluímos, no entanto, haver naqueles tempos uma grande liberdade verbal e que os trovadores gozavam, em certa maneira, dos privilégios dos bobos da corte. Talvez os ameaçassem com um chicote, mas eles iam falando.

Nestas cantigas contra os grandes, uma das mais bonitas e ágeis é a que Fernan Soárez Quinhones compôs contra o fidalgo Lopo Anaia, femeeiro e ladravaz. Que o rei o conserve junto de si, em Sevilha, e não se vá embora. Porquê? Porque, Se el algur acha freiras, / ou casadas ou solteiras, / filha-xas pelas carreiras. E se gritam, ficam com nódoas negras na cara. Fique em Sevilha, porque, onde passa, toma tudo para si. E o mesmo fazia o pai dele!

Sátiras a Trovadores e Jograis

Os poetas dos cancioneiros desavinham-se entre si, em pequenas escaramuças verbais, donde a sinceridade às vezes batia as asas. Transformavam-se, então, em mero ludismo, aliás útil para os divertir a si e ao público. Havia ataques de costumes menos limpos, debatiam-se questões de estética, verificavam-se choques de ordem social e diziam-se graças. E já não falamos de questões meramente pessoais. Comecemos por simples graças e disputas para divertir. A tenção entre Afonso Sánchez e Vasco Resende é um tanto sibilina. O tema é este: A senhora cantada pelo segundo poeta morreu de facto ou isto não passou de simples metáfora? Porque fazia ele versos de amor a quem já morrera? Afonso Gómez, jogral galego, fala claro e diz a Martin Moxa: Tão velho sois que, decerto, comestes alguna erva que vos faz viver / tan gran tempo, que podedes saber / mui ben quando naceu Adan e Eva! Os vossos filhos barbados vêm de tempos antigos. Ora dizei-me, de que idade éreis vós, quando Almançor andou por aí a fazer estragos? Assim Deus me perdoe, quando nascestes vós? Antes do tempo em que encarnou Deus en Santa Maria?» In Mário Martins, A Sátira na Literatura medieval Portuguesa (séculos XIII e XIV), Biblioteca Breve, Série Literatura, volume 8, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, Centro Virtual Camões, 1986.

Cortesia de Biblioteca Breve/JDACT

JDACT, Mário Martins, Literatura, Cultura e Conhecimento, Instituto Camões,