segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

A Ponte dos Suspiros. Fernando Campos. «Amistoso o encontro com dom Manuel de Portugal. Conhecíamo-nos da infeliz batalha de Alcântara. A quinta era mimosa, abeberada pelo rio, pingue de semeadura e olival. Fiz-me anunciar por um caseiro…»

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A Ponte dos Suspiros

«(…) Ai, padre! O coitadinho tinha a pilinha torta! Contou-me o meu querido Lopo, que lá morreu com el-rei... Quando no dia seguinte me deitei a caminho de Évora, de vez em quando dava comigo a rir sozinho por aquelas charnecas e planícies... Não, não! Não era do fugir das lebres que se levantavam à minha passagem e disparavam mato fora como doidas. Era porque, Deus me perdoe, me acudia à ideia a imagem de dona Gabriela, cheia de unção, a beijar a pilinha torta de um São Sebastião que tinha as feições de el-rei... Em Évora, junto à Sé, tal como me havia sido indicado, encontrei o sapateiro Simão Gomes, a cabeça nevada, arqueado sobre a banqueta de trabalho a ensebar umas botas e a cantar quase sem fôlego:

... do leão o seu bramido

demonstra que vai ferido

desse bom rei encoberto...

Levantou para mim os olhos quando assomei à porta da oficina. Continuais então a acreditar, mestre Simão..., disse-lhe como se o conhecesse desde sempre. Bom dia, padre. Sois forasteiro, embora desejeis inculcar o contrário. Como sabeis? Dom que tenho. Também sei que vindes de longe... Ora, Simão Gomes. Ide enganar outro que nanja a mim. Não tive foi o cuidado de sacudir o pó dos caminhos. Há outro pó que não se sacode, Reverendo, e vós sabeis disso muito bem. Vê-se no fundo das almas através dos olhos... Está bem, está bem. Deus vos abençoe. Guardai o vosso latim. Guardai vós o vosso, frei Ninguém... Estêvão Sampaio. ... frei Estêvão... Que desejais? Umas sandálias? Parece que sim, que preciso de umas. Sentai-vos aí. Media-me o pé, disse-lhe: Sei que fostes sapateiro de el-rei... É verdade. Há quantos agostos foi isso! Porque dizeis agostos?

Contas das minhas sovelas. Resolvi ir ao miolo do assunto: Venho de Lisboa, de acinte para vos falar, depois de ter estado com o barbeiro e o alfaiate de el-rei... Conheço. Das pessoas que particularmente o conheceram, ando a inquirir as marcas do corpo dele. Para terdes a certeza de que é ele, desta vez? Como te passa semelhante ideia pela cabeça? Desatou a dar lustro às botas e a cantar:

... de terra em terra andará muita gente

lhe há-de morrer...

E se fosse?, perguntei. Parou a função e olhou-me muito sério: É. Mestre Simão, confundis-me. Frei Estêvão Sampaio, não me confundis. Pus-me a rir: Desarmais-me com os vossos agostos e sovelas e cantigas tontas. Não são tontas..., e pôs-se de novo a cantar:

Ergue-se a águia imperial

com seus filhos pelo rabo

e com as unhas no cabo

faz o ninho em Portugal...

Deus te oiça, mestre. Falei de agostos? Pois ficai sabendo que foi naquele agosto maldito que lhe tirei a medida do pé pela última vez, como o fiz agora convosco... Em Agosto? Pois fostes com ele à batalha? Ficastes cativo? Vistes o que aconteceu a el-rei? Falai, homem. Pode ser muito importante o que estais a dizer..., e eu levantava-me assombrado. Credo, padre! Parece que vistes o diabo, Não, não fui com ele à batalha nem sei nada do que lhe aconteceu a não ser que um dia..., poucos dias andados depois da batalha. Aí a essa porta..., assomaram dois andarilhos, mendigos, romeiros ou lá que eram. Vinham chagados como de guerra. Traziam rotos os sapatos... Quando tirei a medida ao pé de um deles... Vede lá, padre, se eu não reconheceria aquele pé... Depois sumiu-se que nunca mais soube dele..., e vindes vós agora perguntar..., porque..., dizei-me, que vos serve agora inquirir sobre os sinais do corpo dele? Só vejo uma razão... Tentando ainda esconder-lhe o meu segredo, disse: Digamos que pretendo pintar o retrato de el-rei.

Ah, ah, ah! Disparate! Que colhestes do cirurgião-barbeiro? Que lhe falta um molar? Conheço a história. E do alfaiate? Que tem um braço maior do que o outro? Pretendeis pintar um bobo, de boca aberta e com a piça torta? E de mim que desejais? Que vos diga que ele, além do pé pequeno e dos dedos quase iguais, tinha o peito do pé alto e uma verruga no dedo mindinho do pé direito? Ides pintá-lo descalço?... Ora, ora, frei Estêvão! A maioria das pessoas lida cega, sem suspeitar que é guiada pelos astros. Eu leio nos astros e nas marcas que eles deixam nos olhos das pessoas como vós... Quereis ver? Dizei. Vós vindes de muito mais longe que de Lisboa..., de muito, muito longe... Onde é que ele está agora o meu senhor rei?... Fiquei calado, hesitante. Não quereis falar, vejo. Eu sei que é missão perigosa a que vos traz. Sois corajoso... Frei Estêvão Sampaio não descansa enquanto não vir restaurado o reino de Portugal...

Amistoso o encontro com dom Manuel de Portugal. Conhecíamo-nos da infeliz batalha de Alcântara. A quinta era mimosa, abeberada pelo rio, pingue de semeadura e olival. Fiz-me anunciar por um caseiro e daí a pouco lá vinham do lagar do azeite a limpar as mãos a um trapo os seus oitenta anos saudáveis: Estêvão Sampaio!

Meu caro Manuel! Que bom abraçar-te de novo! Com ele não havia guardar segredo. Ele próprio tinha o seu: Fora um dos portugueses a quem Marco Túlio havia entregado carta de el-rei... vai fazer um ano..., dizia». In Fernando Campos, A Ponte dos suspiros, 1999, Difel SA, 2000, ISBN 978-972-290-806-1.

Cortesia de Difel/JDACT

JDACT, Fernando Campos, História, Literatura,