domingo, 11 de dezembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Vila Real não é cidade afortunada. Terá o viajante de explicar-se melhor para que não fiquem a querer-lhe mal os naturais, assim desacreditados imerecidamente»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

Tentações do Demónio

«(…) A estrada segue por altas paragens, depois de logo à saída de Carrazedo deixar de acompanhar o rio Curros. São estas terras grandes desertos, andam-se quilómetros sem ver gente, e quando surge de repente uma povoação que não se espera chama-se Jou, que lindo nome, ou há modestos caminhos que levam a Toubres, a Valongo de Milhais, a Carvas, o viajante vai repetindo estas palavras, saboreia-as, nem precisa doutro alimento. Os nossos antepassados eram gente imaginativa, ou estava a nascente língua portuguesa muito mais solta em seu movimento do que está hoje, quando aí nos vemos em papos-de-aranha para baptizar novos lugares habitados, que graça tem Vila Isto, Vila Aquilo. Assim discorrendo, vai o viajante deitando olhos à paisagem, ao grande consolo destes montes e destas vegetações, bravas ou cultivadas, as pedras e os penedos, os gigantescos lombos das serras, até um homem se esquece de que há léguas de planícies lá para baixo.

O viajante entra em Murça, terra de muita fama e opinião, que teve em tempos um soberbo rasgo de humor ao pôr sobre pedestal uma enorme porca de granito, irmã maior das que se dispersaram por estes lados. Ali está no largo principal, toda em costados e lombos, em presuntos inesgotáveis, fungando a quem passa. Subiu do chiqueiro à pureza da chuva que a lava, do sol que a enxuga e aquece, no meio do seu jardinzinho que o município cuidadosamente defende. O viajante vai ao vinho, que é outra e não menor fama da terra, compra umas garrafas, e tendo assim suprido apetites futuros vai dar uma volta ao passado apreciando a fachada da Capela da Misericórdia, que é como um retábulo de altar trazido para a luz do dia. Estas colunas torsas, estas folhagens esculpidas com artes de botânico repetem modelos, copiam padrões, mas, de cada vez, renova-se o deslumbramento da pedra trabalhada por instrumentos de joalheiro ou filigranista. Uns pássaros de pedra empoleirados nos pináculos voltam a cabeça para trás, desdenhosos, ou terá o gesto um significado místico que o viajante não conhece. O mais certo, porém, é estarem-se já rindo das impaciências do viajante quando, passado o rio Tinhela, entrar no labirinto das não menos afamadas Curvas de Murça, esse faz-que-anda, mas-não anda, que leva a desejar ter asas para voar em linha recta. Enfim se chega a Vila Real, e, tendo o viajante andado por tão maus caminhos, pasma deste privilégio, a avenida de cintura, pista de corridas para bólides de fora e dentro. Há grandes contrastes na vida, e agora mesmo, ao entrar na cidade, viu o viajante o exagero de uma pedra de armas toda ornamentada de volutas e penachos, de tal maneira que mais avultam os enfeites barrocos do que as prosápias de brasão. Estaria o viajante tentado a ver aqui um sinal de modéstia se não fosse ser a pedra de tamanho descomunal, que muito esforço há-de ter custado ao mestre canteiro.

Casa Grande

Vila Real não é cidade afortunada. Terá o viajante de explicar-se melhor para que não fiquem a querer-lhe mal os naturais, assim desacreditados imerecidamente. Em verdade, que se há-de dizer de uma terra que tem, a nascente, Mateus, com seu solar de atractivo fácil, a poente, o Marão, a sul, o vale do Corgo e o outro, paralelo, por onde não corre rio de água mas onde escorre a doçura das vinhas? Viajante que por aqui se encontre, há-de por força andar distraído, a pensar no que lhe está tão perto». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

 Cortesia de PEditora/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,