segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Viagem a Portugal. José Saramago. «Adiante é a Samardã, lugarejo entornado na encosta do monte, apostemos que está como Camilo a deixou. Esta casa, por exemplo, com a data de 1784 na padieira da porta…»

jdact e cortesia de wikipedia

De Nordeste a Noroeste. Duro e Dourado

Tentações do Demónio

«(…) E este tem outro seu motivo especial, que está a norte, a acenar-lhe: Vem cá! Vem cá!, e tão imperioso é o apelo que o viajante, ao acordar, fica de repente nervosíssimo, dá-lhe uma grande pressa, e em dois tempos já lá vai na estrada. Não o espera mina de ouro ou encontro secreto, mas esta manhã é certamente gloriosa de brancas nuvens, grandes e altas, e um sol que parece ter endoidecido. A poucos quilómetros de Vila Real está Vilarinho de Samardã, e logo a seguir a Samardã. Hão-de perdoar-se ao viajante estas fraquezas: vir de tão longe, ter mesmo à mão de ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual sua beleza, uma serra lendária, e correr, em alvoroço, a duas pobres aldeias, só porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco.

Uns vão a Meca, outros a Jerusalém, muitos a Fátima, o viajante vai à Samardã. Por esta estrada seguiu, a cavalo ou de traquitana, o doido do Camilo quando jovem. Em Vilarinho passou ele, palavras suas, os primeiros e únicos felizes anos da mocidade, e na Samardã se deu o assinalado caso do lobo que resistiu a cinco tiros e acabou comendo a metade da ovelha que faltava. São episódios de vidas e de livros, razão mais do que bastante para que o viajante ande à procura da casa de Vilarinho, perguntando a umas mulheres que lavam no tanque, e elas apontam, é logo adiante. Lá está o dístico, mesmo ao lado da ombreira da porta, mas esta casa é particular, não tarda que venha alguém. Ainda teve o viajante tempo para ouvir o zumbido das abelhas e seguir ao longo da casa, espreitando as varandas corridas, a desejar ingenuamente viver ali, e é aí que lhe aparece uma senhora a indagar destas curiosidades. É ela sobrinha-bisneta de Camilo, cumpridora parente que dá resposta cabal às perguntas do viajante, aos pés de ambos corre um regueiro de água, e as abelhas não se calam, há realmente momentos felizes na vida. Mas não duram muito. À delicadeza da senhora não pode pedir-se mais, tolo é o viajante se cuida que lhe vão oferecer a casa, nem há razão para isso, e assim retira-se, agradece, vai dar uma volta pela aldeia. Há um grande eucalipto, plantado em 1913, árvore enorme cujos ramos mais altos roçam a barriga das nuvens, as mulheres que lavam a roupa dizem: Boa viagem, e o viajante segue o seu caminho, confortado.

Adiante é a Samardã, lugarejo entornado na encosta do monte, apostemos que está como Camilo a deixou. Esta casa, por exemplo, com a data de 1784 na padieira da porta, esta casa viu-a Camilo deste mesmo sítio onde o viajante põe os pés, o mesmo espaço ocupado por ambos, em tempos diferentes, com o mesmo Sol por cima da cabeça e o mesmo recorte dos montes. Há moradores que vêm ao caminho, mas o viajante está em comunicação com o além, não liga a este mundo, perdoe-se-lhe por esta vez. O viajante alonga os olhos pela falda côncava do monte, procura inconscientemente o fojo onde a ovelha tinhosa serviu de engodo ao lobo esfomeado, mas percebeu a tempo que os tempos são outros, andam os lobos por mais longe, adeus». In José Saramago, Viagem a Portugal, 1979-1980, 1981, Porto Editora, Reimpressão 2022, ISBN 978-972-003-473-1.

Cortesia de PEditora/JDACT

 JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, A Arte da Escrita,