domingo, 25 de dezembro de 2022

Levantado do Chão. José Saramago. «Boas razões são as dela, mas Domingos Mau-Tempo não gostou de ser chamado pela mulher à frente de homens, o que é que vão pensar, e enquanto atravessa o largo vai ralhando…»

jdact e Cortesia de wikipedia

«(…) Em frente deles, muito distante, um clarão iluminou as nuvens, ninguém adivinharia que estavam tão baixas. Depois, a pausa, e enfim o atroar surdo do trovão. Só faltava isto. Disse a mulher, Valha-nos Santa Bárbara, mas a trovoada, se não era um resto da que por muito longe andara, parecia seguir outro rumo ou Santa Bárbara aqui invocada a espantara para lugares de menos fé. Estavam já na estrada, sabiam-no porque era mais largo caminho, que outras diferenças só com grande paciência e luz de dia se encontrariam, de buracos e lama vinham, sobre buracos e lama andavam, e agora, tão escuro fazia, nem se podia ver onde os pés pousavam. O burro avançava por instinto, acompanhando o valado. Homem e mulher patinhavam atrás. Lá de vez em quando, o homem dava uma corrida meio às cegas, se a estrada fazia uma curva, para adivinhar São Cristóvão. E foi quando entre a escuridão alvejaram os primeiros muros, que a chuva, de súbito, parou, tão bruscamente que mal se aperceberam.

Chovia, e deixara de chover. Como se um grande telheiro se estendesse sobre a estrada. Está bem que a mulher pergunte, Onde é a nossa casa, são ansiedades de quem já lhe tarda tratar de um filho e, podendo ser, colocar os móveis em seus sítios, antes de na cama estender o corpo cansado. E o homem responde, Do outro lado. Estão todas as portas fechadas, só por algumas frinchas de luz mortiça se tem notícia de habitantes. Num quintal qualquer ladrou um cão. É o costume, há sempre um cão que ladra quando passa alguém, e os outros, que talvez confiados estivessem, pegam na palavra da sentinela e cada qual de cão faz sua obrigação. Um postigo foi aberto e logo fechado. E agora que a chuva parara e a casa está perto, melhor houve de sentir-se este vento frio que correu toda a rua, se engolfou pelas pequenas travessas laterais, sacudiu ramadas que passavam acima dos telhados baixos. A noite, efeito do vento, ficou mais clara. A grande nuvem afastava-se e agora o céu luzia aqui e além. Já não chove, disse a mulher ao filho que dormia e era, dos quatro, o único que ainda não sabia a boa notícia.

Havia um largo, umas árvores que ramalhavam, bruscas. O homem parou a carroça, disse à mulher, Espera aí, e atravessou por baixo das árvores, na direcção duma porta iluminada. Era uma taberna e lá dentro estavam três homens sentados num escano, outro a beber ao balcão, segurando o copo entre o polegar e o indicador, assim como se estivesse parado para um retrato. E atrás do balcão um velho magro, seco, virou os olhos para a porta, era o homem da carroça que entrava e dizia, Boas noites a toda a companhia, esta é a saudação de quem chega e quer amizade de quantos sejam, por fraternidade ou interesse de negócio, Venho viver aqui em São Cristóvão, chamo-me Domingos Mau-Tempo e sou sapateiro. Disse um dos homens sentados sua graça, Mau tempo trouxe vossemecê, e o outro que bebia estava no fim do copo, deu um estalo com a língua e acompanhou, Não traga ele más solas, e os mais riram porque havia de quê e a propósito. Não seriam palavras de mal querer ou mal receber, é noite em São Cristóvão, todas as portas estão fechadas, e se chega um estranho que tem nome de Mau-Tempo, só um tolo não aproveita, demais tendo chovido. Domingos Mau-Tempo juntou aos risos um sorriso de pouca vontade, mas enfim. Valeu abrir o velho uma gaveta e tirar de lá uma chave grande, Tem aqui a chave, já estava a cuidar que não viesse, estão todos a olhar para Domingos Mau-Tempo, a avaliar o novo vizinho, um sapateiro faz sempre arranjo e São Cristóvão estava precisado. Deu Domingos Mau-Tempo sua explicação, É longe de Monte Lavre aqui, choveu-me no caminho, enfim não teria que dar contas da sua vida, mas convém-lhe a simpatia e então diz, Pago um copo a todos, é uma boa e sabida maneira de chegar aos bolsos do coração. Levantam-se os que estavam sentados, assistem ao encher dos copos, é uma cerimónia, e depois, sem precipitação, toma cada qual o seu, num gesto lento e cuidadoso, isto é vinho, não é aguardente que se atire para a goela. Beba também o meu senhorio, diz Domingos Mau-Tempo, e o velho responde, À sua saúde, meu inquilino, é um taberneiro sabedor dos usos sociais das grandes vilas. E estão nestas contumélias quando a mulher se chega à porta, não entra, a taberna é sítio para homens, e diz brandamente, conforme o seu costume, Domingos, o menino está inquieto, e as coisas, tudo molhado, tem que se descarregar.

Boas razões são as dela, mas Domingos Mau-Tempo não gostou de ser chamado pela mulher à frente de homens, o que é que vão pensar, e enquanto atravessa o largo vai ralhando, Se tornas a fazer isto, zango-me. Não respondeu a mulher, ocupada a sossegar o menino. A carroça seguia à frente, aos solavancos, devagar. O burro, com o frio, entorpecera. Meteram por uma travessa onde as casas alternavam com quintais, e parou diante de um casinhoto baixo. É aqui, perguntou a mulher, e o marido respondeu, É. Com a grande chave, Domingos Mau-Tempo abriu a porta. Para entrar, tiveram de curvar-se, isto não é nenhum palácio de altos portões. A casa não tinha janela. À esquerda era a chaminé, de lareira rente ao chão. Domingos Mau-Tempo petiscou lume, soprou um punhado de palha e pôs-se a girar o fugaz archote para que a mulher visse a nova habitação. Havia lenha ao canto da chaminé. Isso bastava. Em poucos minutos, a mulher deitou o filho a um canto, juntou gravetos e achas, e o lume estalou, abriu-se sobre a parede de cal. A casa então ficou habitada. Pela cancela do quintal, Domingos Mau-Tempo fez entrar o burro e a carroça e começou a descarregar a mobília, a metê-la para dentro de casa, sem arrumar, até que a mulher pôde ir ajudá-lo. O enxergão estava molhado de um lado. A água entrara na arca da roupa, a mesa da cozinha tinha uma perna partida. Mas havia uma panela ao lume com umas folhas de couve e uns bagos de arroz, o menino tornara a mamar e adormecera no lado seco do enxergão. Domingos Mau-Tempo foi ao quintal para uma necessidade. E no meio da casa, Sara da Conceição, mulher de Domingos, mãe de João, ficou atenta, olhando o lume, como quem espera que um recado mal entendido se repita. No seu ventre houve um pequeno movimento. E outro ainda. Mas quando o marido entrou, não lhe disse nada. Tinham mais em que pensar». In José Saramago, Levantado do Chão, Editorial Caminho, 1980, ISBN 978-972-212-236-8.

Cortesia de ECaminho/JDACT

 JDACT, José Saramago, Nobel, A Arte da Escrita,