quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Camões e a Infanta D. Maria: Parte II, «Quem póde livre ser, gentil senhora, vendo-vos com juizo sossegado, se o menino que de olhos é privado nas meninas dos vossos olhos mora?». Camões. Soneto 60

(1521-1577)
Cortesia de  publicacoes foriente

Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

De que valia a razão, para que servia o juízo sossegado, em presença de tanta gentileza ? 

Quem póde livre ser, gentil senhora,
Vendo-vos com juizo sossegado,
Se o menino que de olhos é privado
Nas meninas dos vossos olhos mora ?
Ali manda, ali reina, ali namora.
Ali vive, das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são adonde Amor se adora.
Quem vê que em branca neve nascem rosas,
Que crespos fios de ouro vão cercando.
Se por entre esta luz a vista passa,
Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito traspassando,
Assi como um crystal o sol traspassa.
(Soneto 60).

O poeta foi forçado a render-se, perante as armas com que Amor o assaltou:

Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra um paraíso;
Entre rubis e perlas, doce riso;
Debaixo de ouro e neve, côr de rosa;
Presença moderada e graciosa.
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se póde, por arte e por aviso.
Como por natureza, ser formosa;
Fala, de que ou já vida ou morte pende,
Rara e suave, — emfim, senhora, vossa;
Repouso na alegria comedido:
Estas as armas são com que me rende
E me captiva Amor. Mas não que possa
Despojar-me da gloria de rendido...
(Soneto 78).

Mais tarde, voltou Camões a ocupar-se da memorável data em que foi apresentado à infanta, acrescentando alguns pormenores interessantes. Refiro-me às três canções Manda-me Amor que cante.

Cortesia de arscives
Reproduzirei integralmente uma delas, a que reputo a primeira na ordem cronologica (1).
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(1) É a canção 8ª.. Na 7ª e na 18ª (publicada por Juromenha) já são manifestos os indicios de contrariedades:

Manda-me Amor que cante docemente
O que elle já em minha alma tem impresso,
Com presupposto de desabafar-me.
E, porque com meu mal seja contente,
Diz que o ser de tão lindos olhos preso
 — Cantá-lo — bastaria a contentar-me.
Manda-me Amor que cante o que a alma sente, 
Caso que nunca em verso foi cantado,
Nem dantes entre a gente acontecido.
Assi me paga, em parte, o meu cuidado,
Pois que quer que me louve e represente
Quão bem soube no mundo ser perdido.
Sou parte e não serei da gente crido;
Mas é tamanho o gosto de louvar-me
E de manifestar-me
Por captivo de gesto tão formoso,
Que todo o impedimento
Rompe e desfaz a gloria do tormento
Peregrino, suave e deleitoso.
Que bem sei que o que canto
Ha de achar menos credito que espanto.

Eu vivia do cego Amor isento.
Porém tão inclinado a viver preso.
Que me dava desgosto a liberdade.
Um natural desejo tinha acceso
De algum ditoso e doce pensamento.
Que me illustrasse a insana mocidade.
Tornava do anno já a primeira idade;
A revestida terra se alegrava.
Quando o Amor me mostrava
De fios de ouro as tranças, desatadas
Ao doce vento estivo.
Os olhos, rutilando lume vivo.
As rosas, entre a neve semeadas,
O gesto grave e ledo.
Que juntos; movem em mim desejo e medo.

Um não sei quê suave respirando,
Causava um desusado e novo espanto,
Que as cousas insensíveis o sentiam,
Porque as garrulas aves, entretanto,
Vozes desordenadas levantando.
Como eu em meu desejo, se incendiam.
As fontes crystallinas não corriam,
Inflammadas na vista clara e pura;

Florecia a verdura,
Que, andando, cos ditosos pés tocava;
As ramas se baixavam.
Ou de inveja das hervas que pisavam,
Ou porque tudo ante elles se baixava.
O ar, o vento, o dia.
De espiritos contínuos influia.

E quando vi que dava intendimento
A cousas fora delle, imaginei
Que milagres faria em mi, que o tinha.
Vi que me desatou da minha lei,
Privando-me de todo sentimento
E em outra transformando a vida minha.
Com tamanhos poderes de Amor vinha,
Que o uso dos sentidos me tirava,
E não sei como o dava,
Contra o poder e ordem da natura,
Ás arvores, aos montes,
A rudeza das hervas e das fontes,
Que conheceram logo a vista pura.
Fiquei eu só tornado
Quasi em um rudo tronco, de admirado.

Despois de ter perdido o sentimento,
De humano um só desejo me ficava.
Em que toda a razão se convertia.
Mas não sei quem no peito me affirmava
Que, por tão alto e doce pensamento,
Com razão a razão se me perdia.
Assi que, quando mais perdida a via,
Na sua mesma perda se ganhava:
Em doce paz estava
Com seu contrario próprio, em um sujeito.
Oh caso estranho e novo!
Por alta e grande certamente approvo
A causa donde vem tamanho effeito,
Que faz num coração
Que um desejo, sem ser, seja razão.

Despois de entregue já ao meu desejo
Ou quasi nelle todo convertido,
Solitário, silvestre e inhumano,
Tão contente fiquei de ser perdido,
Que me parece tudo quanto vejo
Escusado, senão meu próprio dano.
Bebendo este suave e doce engano,
A trôco dos sentidos que perdia,
Vi que Amor me esculpia
Dentro na alma a figura illustre e bella,
A gravidade, o siso,
A mansidão, a graça, o doce riso.
E, porque não cabia dentro nella
De bens tamanhos tanto,
Sái por a boca, convertido em canto.

Canção, se te não crerem
Daquelle claro gesto quanto dizes.
Por o que se lhe esconde,
- Os sentidos humanos, lhe responde.
Não podem dos divinos ser juizes,
Senão um pensamento,
Que a falta suppra a fé do intendimento -.
____________________________

As três canções informam-nos (o que aliás se confirma com os sonetos 77 e 303) que o poeta foi apresentado à infanta no começo da Primavera:

Tornava do anno já a primeira edade;
A revestida terra se alegrava.
(Canção 8ª)

Ou, como com mais precisão se lê na canção 7ª:


No Touro entrava Phebo e Progne vinha;
O corno de Acheloo Flora entornava.

E foi recebido nos jardins do palácio, em que ella residia:

... O Amor me mostrava
De fios de ouro as tranças, desatadas
Ao doce vento estivo.
(Canção 8ª).

Um não sei quê suave respirando,
Causava um admirável, novo espanto,
Que as cousas insensíveis o sentiam.
Ali, as garrulas aves, levantando
Vozes não ordinárias, em seu canto.
Como eu no meu desejo, se encendiam.
As fontes crystallinas não corriam,
De inflammadas na vista linda e pura;
Florecia a verdura.
Que, andando, cos divinos pés tocava;
Os ramos se baixavam,
Ou de inveja das hervas que pisavam,
Ou porque tudo ante ella se baixava.
Não houve cousa, emfim,
Que não pasmasse della, e eu de mim.
(Canção 7ª).

Em que ano se passou isto? W. Storck, que pensa se trata de D. Catharina de Ataíde e não distingue entre a apresentação (soneto 134; canções 7, 8 e 18), e a estada na igreja (sonetos 77 e 303), escreve: «Sendo certo, caso o soneto (303) interpretado por nós falle verdade, que Luís Vaz avistou a bella lisbonense, pela primeira vez, no meio dos officios funebres da sexta-feira de endoenças, temos ainda que procurar qual seria a verdadeira entre as três sextas-feiras santas do biennio que decorre de 1543 (termo da sua chegada a Lisboa) até  1545, anno em que as más linguas começaram a mexericar dos seus amores. Ou, visto haver camonistas que collocam a chegada a Lisboa no anno de 1542 e o seu desterro da corte (isto é, de Lisboa) no de 1546, será bom alargarmos o campo a explorar, investigando o periodo de 1542 a 1546. O calendário universal de Kesselmeyer ajuda-nos a encontrar de um modo fácil e seguro as datas desejadas. Os cinco dias em que recahiram as sextas-feiras de endoenças são: para o anno de 1542 o dia 7 de Abril; e para os quatro seguintes o 23 de Março; o undecimo e o terceiro de Abril e o dia 23 do mesmo mez. Entre elles, o que de todo em todo corresponde melhor ás indicações metaphoricas, que temos examinado, é o dia 11 de Abril, a sexta-feira santa do anno de 1544».

Mas, se é verdade que a apresentação no paço de Santa Clara precedeu, de alguns dias, as solenidades da sexta-feira mór, e se, por outro lado, o poeta quis indicar por uma forma precisa a data dessa apresentação, o ano que melhor satisfaz a estas condições é o de 1546, em que a sexta-feira santa, segundo se le na passagem que fica transcrita, caiu no dia 23 de Abril, quasi duas semanas depois da entrada do sol no signo de tauro.

Prosegue o illustre professor allemão: «Direi, comtudo, que, pessoalmente, não ligo grande importância á data exacta do «coup de foudre». A sexta-feira santa pertence á mythologia convencional da poesia moderna, desde que Petrarca — a fim de fazer coincidir poeticamente o principio das suas magoas e o dia da Paixão do Salvador — remodelou acintemente, levado pela vaidade do seu coração de artista, as datas do anno de 1327, postulando que a sexta-feira da Paixão recahisse, por milagre, na segunda feira da semana santa! isto é, trocando o dia seis de Abril (em que de facto avistára a madonna Laura) pelo decimo do mesmo mez e anno!».

E certo que Camões, ao escrever o soneto 303, se lembrou do soneto 3.° de PetrarcaIn vita di madonna Laura. Também não ha duvida que no soneto 77, que é de data posterior ao 303, é manifesta a imitação dos referidos versos do poeta italiano. Mas, pelo que fica exposto, não creio que, por parte de Camões, se trate de uma ficção.

Lisboa, no século XVI
Cortesia de biclaranja
Quem apresentou o poeta no paço de Santa Clara?
Presumo que foi o seu amigo e protector, D. Francisco de Noronha, mais tarde segundo conde de Linhares. Além de não faltarem Noronhas na casa da infanta havia motivos especiais para o ex-embaixador de D. João III na corte de Fança ser persona grata da filha de D. Manuel.
Bastava o facto de esta ser a filha estremecida e única da rainha D. Leonor. «Não havia por certo embaixador português na corte de França que não se encarregasse de missões secretas da filha para a mãe e desta para aquela; todos eles seriam por isso bem acolhidos e bem vistos por D. Leonor. Foi o que aconteceu por certo com D. Francisco de Noronha e também com o seu adjunto (Francisco de Moraes), que, como ele próprio conta, recebeu mercês da rainha cristianissima. Nos annos que durou a embaixada, entre 1540 e 1543, tratou-se do casamento de D. Maria com o duque de Orléans, plano que ficou frustrado com a morte deste».

Compreende-se o desgosto que depois devia ter o illustre fidalgo com o estouvado procedimento do poeta. E a esse desgosto alude manifestamente Camões na canção 11ª, v. 181-183:

A piedade humana me faltava,
A gente amiga já contraria via,
No perigo primeiro. . .

Isto. porém, não obstou, como veremos, a que D. Francisco de Noronha continuasse a ser desvelado amigo e protector do grande génio, que, em uma hora amarga, compendiou assim a sua atribulada existência:
 
Que segredo tão arduo e tão profundo!
Nascer para viver e para a vida,
Faltar-me quanto o mundo tem para ella!
E não poder perdê-la,
Estando tantas vezes já perdida!
(Canção 11, 187-191).
 
Em algumas das poesias que já foram citadas (soneto 303, canções 2, 7, 8 e 18), assevera o poeta que, ao apaixonar-se pela infanta, conservava ainda livre o seu coração. Na egloga 2ª insiste neste ponto (v. 438-461):

Lembra-me, amigo Agrário, que o sentido
Tão fóra de amor tinha, que me ria
De quem por elle via andar perdido.
De varias côres sempre me vestia;
De boninas a fronte coroava;
Nenhum pastor, cantando, me vencia.
A barba então nas faces me apontava.
Na luta, na carreira, em qualquer manha,
Sempre a palma, entre todos, alcançava.
Da minha idade tenra, em tudo estranha,
Vendo, como acontece, affeiçoadas
Muitas nymphas do rio e da montanha,
Com palavras mimosas e forjadas,
De solta liberdade e livre peito,
As trazia contentes e enganadas.
Mas, não querendo Amor que deste geito
Dos corações andasse triumphando,
Em quem elle criou tão puro affeito,
Pouco a pouco me foi de mi levando,
Dissimuladamente, ás mãos de quem
Toda esta injuria agora está vingando.

Apesar destas repetidas declarações, havia alguém que então se julgava com direito a um lugar muito especial no coração de Camões.
Era a menina dos olhos rerdes, já celebrada em deliciosos versos, que talvez não fossem de todo estranhos à maneira como ele foi recebido no paço de Santa Clara.
Basta citar aqui as voltas ao mote:

Verdes são os campos
Da côr do limão;
Assi são os olhos
Do meu coração.

Voltas

Campo, que te estendes
Com verdura bella;
Ovelhas, que nella
Vosso pasto tendes:
De hervas vos mantendes,
Que traz o verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados, que pasceis
Com contentamento:
Vosso mantimento
Não no intendeis.
Isso que comeis,
Não são hervas, não;
São graça dos olhos
Do meu coração.

Pobres olhos verdes! Quantas lágrimas não iam eles derramar, por causa dos olhos azuis da infanta!

Continua numa próxima oportunidade! JDACT

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT