terça-feira, 28 de setembro de 2010

Camões e a Infanta D. Maria: Parte III, «Dotou em vós natureza o summo da perfeição; que, o que em vós é senão, é em outras gentileza. O verde não se despreza, que, agora que vós os tendes. São bellos os olhos verdes». Camões

(1521-1577)
Cortesia de publicacoes foriente

Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

Pobres olhos verdes! Quantas lágrimas não iam eles derramar, por causa dos olhos azuis da infanta!

Com que surpresa e com que amargura não leria a enamorada menina estes motes e as respectivas voltas:

Vós, senhora, tudo tendes.
Senão que tendes os olhos verdes ;

Sois formosa e tudo tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.

Veja-se como o poeta ia metendo ferroadas:

Dotou em vós natureza
O summo da perfeição;
Que, o que em vós é senão,
É em outras gentileza.
O verde não se despreza,
Que, agora que vós os tendes.
São bellos os olhos verdes.

Ouro e azul é a melhor
Côr, por que a gente se perde.
Mas a graça desse verde
Tira a graça toda a côr.
Fica agora sendo a flor
A côr, que nos olhos tendes.
Porque são vossos e verdes.

Tudo tendes singular.
Com que os corações rendeis.
Senão que, rindo, fazeis
Covinhas para enterrar
E para resuscitar.
Tem força a graça que tendes,
Senão que tendes os olhos verdes.

Tudo, senhora, alcançais.
Quanto o ser formosa alcança;
Senão que dais esperança
Cos olhos com que matais.
Se acaso os alevantais,
É para as almas renderdes. . .
Senão que tendes os olhos verdes.
Ninguém vos pôde tirar
Serdes tão bem assombrada;
Mas heis-me de perdoar,
Que os olhos não valem nada.
Fostes mal aconselhada
Em querer que fossem verdes.
Trabalhai do os esconderdes.

Cortesia de fraternidaderosacruz
E assim por diante, num misto de depreciação, de fingido elogio e de troça, que tão profundamente deviam magoar quem tinha inspirado tão lindos versos e tanto se desvaneceria da cor dos seus olhos.
E com que arte consumada não reproduz o grande poeta os queixumes e protestos da desolada menina! Vejam-se, por exemplo, estas redondilhas, tão sentidas, de uma tão encantadora ingenuidade:

Mote (alheio)
De pequena tomei amor,
Porque o não entendi.
Agora que o conheci,
Mata-me com desfavor.

Voltas

Vi-o moço e pequenino,
E a mesma idade ensina
Que se incline uma menina
Ás amostras de um menino.

Ouvi-lhe chamar Amor;
Pelo nome me venci.
Nunca tal engano vi,
Nem tamanho desamor.

Cresceu-me, de dia em dia.
Com a idade a affeição,
Porque amor de criação
Na alma e na vida se cria.

Criou-se cm mim este amor,
E senhoreou-se de mi.
Agora que o conheci,
Mata-me com desfavor.

As flores me torna abrolhos,
A morte me determina.
Quem eu trouxe, de menina.
Nas meninas dos meus olhos.

Desta magoa e desta dor
Tenho sabido que, emfim,
Por amor me perco a mim,
Por quem de mi perde amor.

Parece ser caso estranho
O que Amor em mi ordena.
Que, em idade tão pequena.
Haja tormento tamanho!

Sejam milagres de Amor. . .
Hei-os de soffrer assi,
Até que haja dó de mi
Quem entender esta dor.

Mas o poeta não se limitou a depreciar, a meter a ridiculo, aquilo que até então o tinha encantado na menina dos olhos verdes.
Desvairado com os novos amores, que supunha ou esperava ver correspondidos, querendo a todo o custo libertar-se da importuna afeição de quem, de menina, o trazia nas meninas dos seus olhos, esqueceu-se de que tinha obrigação de ser correcto e, num tablado, expôs à irrisão e à maledicência aquela que tanto lhe queria e que talvez não tivesse quem a desagravasse.

Constância
Cortesia de trekearth
Lea-se esta estranha passagem do prólogo da comedia El Rei Seleuco, em que o próprio Camões, autor da peça, fazia o papel do representador:  «Mordomo. Parece-me, senhor, que entra a primeira figura. Moço, mete-te aqui por baixo desta mesa, e ouçamos este representador... Martim. Senhor, ele parece que aprende a cirurgião. Ambrósio. Mais parece o ourinol capado, que anda de amores com a menina dos olhos verdes».
Ficou assim o alucinado poeta desembaraçado desta peia, para mais à vontade pôr o desejo onde não devia.
Quando ele, porém, diga-se de passagem, se viu forçado a penitenciar-se

Do error em que caiu o pensamento,
(Soneto 94)

quando já se lastimava da queda que tinham dado os seus altos pensamentos, procurou rehaver a afeição da menina dos olhos verdes  e para isso empregou todos os esforços. Foram, porém, baldados.
Só na ocasião do embarque para a Índia é que ela se congraçou com quem tão profundamente a tinha magoado, com quem havia dado motivo a que pusessem nódoa feia em uma pura afeição, em um amor honesto.
Mas voltemos ao novo e alto pensamento do poeta e vejamos as principaes fases por que ele foi passando, até a ida para o exilio.
Começando pela celebre canção 11, (1) aí se encontram sobre o assumto importantes indicações, que é pena não obedecerem á ordem cronologica.
_________________________
(1) Eis como a ela se refere W. Storck : «Naquella incomparável canção..., que a edição de Hamburgo chama, com toda a razão, um gemido da natureza que retumbará no mundo, emquanto nelle houver
quem falle ou entenda a lingua portuguesa, temos fragmentos de uma autobiographia do poeta, esboçada a largos traços... Compenetrado e enlevado perante o majestoso conjuncto das ideias, o fulgor da linguagem
máscula e vigorosa, a riqueza da phraseologia, o cunho original das figuras, a ardência dos sentimentos; abalado pelo peso esmagador da angustia que palpita naquellas linhas, pela violência das saudades e profundo amor pátrio que ellas exhalam, pela successão dos golpes dilacerantes alli enumerados, ferindo sem piedade o desterrado, penso que aquella canção, rainha entre todas as canções de todos os poetas anteriores e posteriores a Camões, ou seus coevos, deve pertencer á idade viril do homem, retemperado pelos trabalhos do espirito, pelas magoas do coração e pelas experiências crudelissimas, mas ainda desditoso por culpa própria e descarinho alheio». Vida de Camões, pag. 149 e 150. E por estes motivos que o ilustre professor alemão supõe a canção 11 escrita durante o periodo índio (1554), abandonando assim a opinião, que anteriormente linha seguido, de que «o sublime poema datava dos annos posteriores ao regresso da India».
________________________________
Eis como o poeta, nessa canção (v. 81-151), fala do seu amor por aquela que

Parece... que tinha forma humana,
Mas scintillava espíritos divinos:
......................................................
Que género tão novo de tormento   81
Teve Amor, sem que fosse, não somente
Provado em mi, mas todo executado?
Implacáveis durezas, que ao fervente

Desejo, que dá força ao pensamento,  85
Tinham de seu propósito abalado
E corrido de ver-se e injuriado:
Aqui sombras phantasticas, trazidas
De algumas temerárias esperanças:

As bemaventuranças,  90
Também nellas pintadas e fingidas. —
Mas a dor do desprezo recebido.
Que todo o phantaziar desatinava.
Estes enganos punha em desconcerto.

Aqui o adivinhar e o ter por certo  95
Que era verdade quanto adivinhava;
E logo o desdizer-me, de corrido;
Dar ás cousas que via outro sentido;
E para tudo, emfim, buscar razões.
Mas eram muitas mais as semrazões!  100

Não sei como sabia estar roubando 
Cos raios as entranhas, que fugiam
Para ella por os olhos, subtilmente.
Pouco a pouco invisiveis me saíam,
Bem como do veu húmido exhalando  105
Está o subtil humor o sol ardente.
O gesto puro, emfim, e transparente,
Para quem fica baixo e sem valia
Este nome de bello e de formoso,

O doce e piedoso  110
Mover d'olhos, que as almas suspendia,
Foram as hervas magicas, que o ceo
Me fez beber, as quaes, por longos annos.
Noutro ser me tiveram transformado,
E tão contente de me ver trocado,  115
Que as magoas enganava cos enganos,
E diante dos olhos punha o veo.
Que me encubrisse o mal que assi cresceo.
Como quem com afagos se criava
Daquella para quem crescendo estava.  120

Pois quem póde pintar a vida ausente.
Com um descontentar-me quanto via,
E aquelle estar tão longe donde estava,
O fallar sem saber o que dizia,
Andar sem ver por onde, e juntamente 125
Suspirar, sem saber que suspirava ?
Pois quando aquelle mal me atormentava
E aquella dôr, que das Tartareas aguas
Saio ao mundo, e mais que todas doe,
Que tantas vezes soe  130
Duras iras tornar as brandas magoas?
Agora, co furor da magoa irado,
Querer e não querer deixar de amar,
E mudar noutra parte, por vingança,
O desejo privado de esperança,   135
Que tão mal se podia já mudar?
Agora a saudade do passado,
Tormento puro, doce e magoado,
Que converter fazia estes furores
Em magoadas lagrimas de amores?  140

Que desculpas, comigo só, buscava
Quando o suave amor me não soffria
Culpa na cousa amada, e tão amada!
Eram emfim remédios que fíngia
O medo do tormento, que ensinava  145
A vida a susientar-se, de enganada.
Nisto uma parte della foi passada.
Na qual, se tive algum contentamento,
Breve, imperfeito, tímido, indecente,
Não foi senão semente  150
De um comprido, amaríssimo tormento.

Cortesia de splishsplashblog
Reproduzirei agora, tentando aproximar-me da ordem cronologica, algumas das muitas poesias líricas de Camões, que servem, por assim dizer, ou de comentário, ou de complemento, a esta passagem da canção 11. Embora o poeta, em composições posteriores, faça datar a sua paixão pela infanta, quer do dia em que lhe foi apresentado (canções Manda-me Amor que cante), quer da ocasião em que a viu na igreja (soneto 77), o que é certo é que o soneto 134 não é tão explícito a este respeito. O que nele e no 303 se acentua é a diferença de estados, que então aparecia ao poeta como um obstáculo muito difícil de vencer, se não mesmo insuperável, para o seu novo pensamento.
Basta reler os versos com que ele termina os dois sonetos, especialmente o segundo:

Para remediar-me não ha hi modo?
Oh ! Porque fez a natureza humana
Entre os nascidos tanta differença?

 
Houve, portanto, um período de hesitações, em que o poeta, armando-se da razão, chegou, num momento de lucidez, a formular esta pergunta:

Eu que espero de um ser, que é mais que humano?
(Soneto 137).

Mas era tão difícil arrancar-lhe da alma a esperança de que podia vir a ser amado pela nobre e formosa senhora, que tão profundamente o havia impressionado! Ouçamo-lo:

Mote
Se espero, sei que me engano;
Mas não sei desesperar.

Glosa
O meu pensamento altivo
Me tem posto em tal extremo.
Que, quando esperando vivo,
O bem esperado temo,
Muito mais que o mal esquivo;

Que, para crescer meu dano
No gosto da confiança.
Ordena o Amor tyranno
Que, na mais firme esperança,
Se espero, sei que me engano.

Deste novo sentimento
Chega a tanto a nova dor.
Que se enlea o pensamento!
Ver que, no mór bem de amor,
Se descobre o mór tormento!
 
Folgara de me enganar,
Mas não é cousa possível,
Pois, para sempre penar,
Sei que espero o impossível.
Mas não sei desesperar!

Foi também neste estado de espirito que o poeta escreveu, além d'outros, o soneto 9:

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que, em vivo ardor, tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.
É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.
Estando em terra, chego ao ceo voando;
Numa hora acho mil annos, e é de geito
Que, em mil annos, não possa achar uma hora.
Se me pergunta alguém porque assi ando,
Respondo que não sei: porém suspeito
Que só porque vos vi, minha senhora.

Nesta fase o poeta quasi que se contenta só com ver a formosa infanta:

Quando da bella vista e doce riso
Tomando estão meus olhos mantimento,
Tão enlevado sinto o pensamento.
Que me faz ver na terra o paraíso.
Tanto do bem humano estou diviso,
Que qualquer outro bem julgo por vento.
Assi que, em termo tal, segundo sento.
Pouco vem a fazer quem perde o siso.
Em louvar-vos, senhora, não me fundo,
Porque, quem vossas graças claro sente,
Sentirá que não póde conhecê-las;
Pois de tanta estranheza sois ao mundo.
Que não é de estranhar, dama excellente.
Que quem vos fez, fizesse ceo e estrellas.
(Soneto 17).


Cortesia de portalsaofrancisco 
Mas este estado de alma tendia necessariamente a modificar-se:

De amores de uma ínclita donzella
Ferido o mesmo deus de Amor se viu
E preso emfim, por mais que resistiu;
Que a tudo vence e rende a força della.
Jámais o mundo viu dama tão bella!
Com ella a natureza repartiu
A graça, com que ao mesmo Amor feriu,
Laços, com quem não vale força ou cautella.
Oh rara e nunca vista formosura.
Formosura bastante a subjugar
O mesmo deus de Amor, tão soberano!
Olhai se poderá de um fraco humano
A força, a força tal muito durar.
Quando a força de Amor tão pouco dura!
(Soneto 308).

Lá dizem também as redondilhas à tenção de Miraguarda:

Ver e mais guardar
De ver outro dia.
Quem o acabaria ?

Voltas
Da lindeza vossa,
Dama, quem a vê
Impossivel é
Que guardar-se possa.
Se faz tanta mossa
Ver-vos um só dia,
Quem se guardaria ?
 
Melhor deve ser,
Neste aventurar,
Ver e não guardar,
Que guardar de ver.
Ver e defender
Muito bom seria;
Mas quem poderia?

E por isso que o desejo prevaleceu sobre a razão:

Mote
No meu peito o meu desejo
Da razão se fez tyranno;
Vejo nelle certo dano,
Incerto remédio vejo.

Voltas
Para de todo defender-me,
Este mal por passar tinha:
Ir eu contra a razão minha,
Que morre por defender-me.

Da parte de meu desejo
Me passo, para meu dano.
Vejo que nisto me engano,
Mas nenhum remédio vejo.

O poeta reconhecia a inutilidade da sua audácia:

Senhora, quem a tanto se atreve,
Que consente em servir vossa lembrança,
Sabendo que a tem sem esperança,
Não pouco é que por isso se lhe deve.
Mais cala esta minha alma do que escreve,
Sem esperar que seu mal faça mudança,
Não querendo outra bemaventurança
Maior, do que o amor com que vos serve.
Que esperar grandes casos da ventura
É offender vosso merecimento;
Com esse pagareis meu tormento.
Tenho por impossivel sua cura,
E inda ficará meu pensamento
Devendo sempre a vossa formosura.
(Soneto 304).

Cortesia de tertuliabibliofila
Estava, por isso, firmemente resolvido a esconder lá bem no intimo o segredo do seu coração.

Continua, numa próxima oportunidade! JDACT

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT