domingo, 27 de fevereiro de 2011

Alfredo Alves: D. Henrique o Infante. Memória Histórica. Parte III. A caça e as regras da montaria. A Cavalaria e as canções de gesta


Cortesia de paulocampos 

«A sua educação física, como a de todos os mancebos da época, era um aprendizado nos exercicios arriscados da caçaa para os lances dos combates, em que se ganhava a espada ambicionadissima da sagrada Cavalaria. A caça ou montaria era a predilecta distração na Idade Média, de todo o que sentia nos braços a valentia e a força. Caçadas perigosíssimas aos ursos e javalis foram o tema de várias canções de gesta e de fabliaux. Casava-se a galanteria com o perigo; o prémio de quem alcançasse dar morte a um urso, ou conseguisse trazer as mãos um corvo branco, era um beijo nos lábios da mais formosa dama que aparecesse na excursão venatória. Ser bom caçador era uma das principais qualidades de qualquer nobre ou cavaleiro. D. João na sua adolescência, tendo por aio Nuno Freire de Andrade, ainda parente de sua mãe Tereza Lourenço de Andrade filha de Gil Rodrigues de Valadares, habituara-se com ele às montarias arriscadas ao javardo e ao lobo, e na fadiga desses exercícios dava a elasticidade do aço aos sens músculos sadios e educava o ânimo no labor de perseguir e combater; por isso foi um caçador experimentado, que chegou a compilar várias regras de monteria, em um livro que andava em sua recamara. E então com os filhos Duarte, Pedro e Henrique e muitas vezes o bastardo Afonso (ou João Afonso) percorria, alegre, seguido de seus monteiros e lebreus os montados e tapadas a perseguir o javali e o cervo.

Cortesia de guerradarestauração
Dava regras aos filhos, ele, que se podia considerar um mestre na arte. A caça grossa deveria ser morta a flecha aguda; as lebres, com um virotão terminado por uma masseta; aos patos bravos devia-se enganar com a armadilha da vaca artificial, como que pastando no arrelvado das insuas; os lobos tinham de ir cair, famintos, em um cercado, atraídos pelo cheiro de presunto, lá posto no centro, como engodo. E animava-os nas correrias; citar-lhes-ia, talvez, o caso, que Froissart refere, de Eduardo III, de Inglaterra, atravessar a França seguido de 30 falcoeiros e 240 cães. Podia-se comparar D. João I no gosto da monteria a D. Afonso XI, de Castella, que em 1340 fez redigir um Libro de Monteria, inspirado decerto no célebre Livro do Rci Modus, o mais antigo repositório de regras aos confrades de Santo Huberto, bispo de Liege. Caçava-se também com falcoes; era o modo predilecto das donas e donzelas irem à monteria; nas suas facanêas, levadas de rédea pelos pagens, elas cavalgavam, armadas de sorrisos, com a preciosa ave em punho, pronta a ser despedida sobre a caça como um virote.
Eram estimadissimos, então, os falcões; os melhores vinham da Suécia, da Islândia, de Marrocos, da Turquia. Citava-se com inveja o caso de Bajazet ter mostrado aos prisioneiros da batalha de Nicopolis umas 7 mil daquelas aves. Tinham estas verdadeiros apaixonados; o seu voo arrojado e certeiro, como uma frechada, entusiasmava os entendedores:


Qui auroit la mort aux dents
Il revivroit d'avoir tel passe-temps!
 
chegara a escrever Guilherme Crétin, poeta de Luiz XII.

Cortesia de guerradarestauracao
Eram próprios da época os torneios; desde 1066, em que Godofredo de Pailly os idealizou, serviam eles de bom aprendizado nas armas aos mancebos que tinham por destino o combater. Assaltantes e mantenedores giravam nas liças; altivos em suas armaduras, correctos em seus meneios, fuzilando raios de espadas e estrondeando em choques violentíssimos, com seus pendões ao vento e seus olhares na dama dos pensamentos, velavam a rudeza dos seus feitos com um sendal de poesia: o culto ariano do belo e do frágil, personificado na mulher. Nesses torneios, que se repetiam nas solenidades de mais importância, educaram-se também os Infantes de Aviz.
À epoca era ainda de Cavalarias; havia pouco tempo que aos nove preux já consagrados:
  • Machabeu,
  • Josué,
  • David,
  • Alexandre Magno,
  • Heitor,
  • Júlio Cesar,
  • Karl, o Magno,
  • Godofredo de Bouillon,
  • Beltram,
  • se acrescentara um décimo, Duguesclin.
A Cavalaria ainda era um sacerdócio da guerra; aureolava-se com a generosidade e as suas armas deviam defender todo o que se afundasse na tristeza do desamparo.
O espírito cavalheiresco caía no fervido tumultuar das paixões como uma aspersão de água benta na fronte de um réprobo; era como uma aragem que descesse do céu a varrer os miasmas que ao de cima de um pântano se alastravam, nas almas. O seu móbil não seria todo ideal, contudo ele foi um protesto reabilitador da Humanidade. E nesse espírito que vêm acolher-se as correntes de tradicões indo-europeias, que se transfundem nas almas, de geração a geração, como o sangue de organismo a organismo; e essas tradições combinadas com a Ideia Cristã, que por assim dizer criou uma nova raça humana, desenvolvem-se gradualmente nas Epopeias. Aquelas começam no mar dos povos a surgir assim como, longe da costa, afloram a superficie do Oceano as espumas precursoras das vagas, que se formam depois e rolam na praia com estampido formidável.

Cortesia de wikipedia 
Pois da mesma forma, nos tempos medievos, uma ou outra palavra revelava, aqui e ali, o assuntto que de longe vinha na asa da tradição; acolhia-o qualquer espirito que o desenvolvia em uma cantilena ou chacone, assimiliva-se esta com outras idênticas, enleiavam-se todas como ramos de florestas ou como raizes vigorosas, e essas cantilenas, sons isolados, constituiam, enlaçando-se, as canções de gesta.
A canção de gesta de Rolando é vibrante como um clarim de guerra; a Diurendal, a boa espada do herói, sulca como um arado vasta gleba de muçulmanos, Ganelon é a personificação do Mal; Alda, o eterno feminino; o cunho ariano de Justiça lá vem impresso nessa primeira compilação de cantilenas, e também o Cristianismo vai chamando a si e absorvendo a composição, tornando-a uma epopeia sua». In G 286, H5A53, Porto, Typografia do Commercio do Porto, 1894.

Cortesia de Typografia do Commercio do Porto, 1894/JDACT