sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Os Teatros de Lisboa: Júlio C. Machado. Ilustrações de Bordalo Pinheiro. Parte II. «Em S. Carlos não há surpresas. Sabe-se de cór as óperas ... e os camarotes»

Cortesia de bordalopinheiro

O Teatro de S. Carlos

«Assim também tudo vai na récita de abertura, para alguns, de haver outro que entenda da obra, ou passe por isso, que seja autoridade na plateia ... e que coçe o nariz.
Se não lhes dão sinal a tempo de que tudo vai bem, dão pateada!
Dão pateada logo; é sabido; e já não faz mal; entretém.
Os tenores, de ordinário, no primeirio ano em que põem o pé em Lisboa, pagam a patente. É aguentar! Que remédio!? Assim tem sido sempre, assim será enquanto houver S. Carlos. É da profissão dos tenores levarem duas tacadas, ou três, em Lisboa, logo que abrem a boca. Não sei até se já lhes põem isso na escritura. O que vale é que estamos por pouco a livrar-nos deles; estão todos estropiados e a morrer. Destroço geral. Uns de cama todo o dia, a gemer, levantando-se à noite para cantar, outros alimentando bronquites pavorosas. Por ambos os pulmões já não há nenhum que respire - a não ser o que nunca se queixou, nem os jornais o deram com asma, sinal de que resiste e se conserva óptimo.

Cortesia de bordalopinheiro

O público respeitou-o sempre. Através das tormentas teatrais, por entre as agitações e os cataclismos das plateias turbulentas, este tenor escapou sempre incólume da fúria e do rigor dos públicos.
Lisboa aplaudiu-o desde que ele tem uso de razão; na infância, na adolescência, na idade adulta - e agoraainda, todos os anos, pelo entrudo, sempre que há Barbeiro de Sevilha e que ele na parte do sargento merece os sufrágios pelo garbo com que interpreta a música e o personagem.

Cortesia de bordalopinheiro
De uma ocasião, sendo ele desde anos imemoriais encarregado do papel triunfante do noivo na Lúcia de Lamermoor - aquele noivo que aparece de repente no segundo acto como um cogumelo, e vai todo lépido de calça com rendas a empalmar a noiva ao pobre sir de Ravenshow: tiraram-lhe esta parte, e passaram-no a simples guarda de Ravenshow, guarda do seu antigo rival; ó oprobrio!

Cortesia bordalopinheiro 
Bruni pareceu sentir-se disto, e eu molhei a pena nas mais puras lágrimas e comemorei num folhetim este desaire. À noite, encontrei-o no corredor do teatro, e, apesar de eu não ter nesse tempo o prazer de gozar as suas relações, vi-o atravessar para mim, entreabrindo-se seus lábios para despedirem algumas frases. Mau! pensei eu. Temos obra. Vem pedir-me explicações, uma satisfação - como a gente diz. Vou ter uma brunice!

Cortesia de bordalopinheiro
A este tempo, ele interpelava-me:
Sr. Machado? 
- Às suas ordens.
- É o sr. Machado, escritor?
- Faço por isso.
-Tenho duas palavras a dizer-lhe.
E puxou-me para um canto. 
- Agora é que vamos esbrunar-nos! disse eu entre mim.
Uma vez ao canto, ele, chegando-se bem a mim, e pegando-me num botão da casaca, expressou-se pelo seguinte teor:
- Querem tirar-me também o tabelião da Somnambula! ...
- Ah!
Queria outro folhetim!...
Inventor, filósofo, comerciante - e sempre mais ou menos tenor, o que não quer dizer tenor de pouco mais ou menos - Bruni tem esmaltado a sua carreira de efemérides curiosas, e percorrido - com facilidade igual aquela com que seu garganteado percorreu sempre a gama - toda avasta escala das tentativas e ambições humanas. Por isso sentem-se de algum modo uns poucos de Brunis na longa serie de anedotas, em que prima a existência deste cantor da Itália, que chega a parecer notavelmente cantor português, não direi na pronúncia ... mas na voz.

Cortesia de bordalopinheiro
Pouco depois de haver chegado a Lisboa, e dando-se em S. Carlos a Gazza ladra, Bruni lembrou com instância à empreza que era justo darem-lhe a parte do judeu nesta borleta deliciosa do velho papá Rossini. - Porque é justo? perguntou-lhe Vicente Gorradini.
- Porque sim. - Porque sim, não é razão. Se tens resposta que o seja - diz.
- É justo dar-me o judeu, porque fui eu que o criei
- Criaste o judeu?
- Criei, sim senhor.
- Onde diabo criaste tu o judeu?
- Em Itália, per Bacho!
- Mas a Gazza ladra é mais velha que tu!
- Não é tal.
In Júlio César Machado, Os Teatros de Lisboa, Ilustrações de Bordalo Pinheiro, Livraria Editora Mattos Moreira, 1874, PN 2796 L5M25, Library Mar 1968, University of Toronto.

Cortesia de Livraria Editora Mattos Moreira, 1874/Bordalo Pinheiro