sábado, 26 de fevereiro de 2011

Oliveira Martins: O Princípe Perfeito. Prefácio, Parte I. « ...D. Afonso V armara cavaleiro o Príncipe D. João. Fora ali, em frente do cadáver ensanguentado e ainda quente do Conde de Marialva...»

D. Afonso V
Cortesia de madeiragenealogy

«A referência à estada de Oliveira Martins em Branc'Annes deu-nos ensejo para indicar, em traços muito gerais, o conteúdo do capitulo primeiro da história do Principe Perfeito. A publicação, por inteiro, d'esse precioso trecho litterário dispensava nesse momento, e dispensa agora, referência mais extensa e minuciosa à matéria que o compõe. Não sucede, porém, o mesmo pelo que respeita ao que viriam a ser os onze capitulos seguintes. Para se poder formar uma noção menos incompleta da obra toda, torna-se mister desenvolver a indicação dos assuntos que os constituiriam, e referir a ordem porque estes ali seriam expostos.
É o que intentamos fazer, ocupando-nos seguidamente do capitulo segundo.
Deveria proseguir e ultimar-se nele a história de D. Afonso V. O episódio castelhano da vida deste monarca ficara narrado no capitulo lº. Da sua menoridade tratára-se com larguesa nos Filhos de D. João II. Somente restava pois, para rematar o quadro, narrar a viagem a França, os últimos e tristes anos do reinado e a morte do infeliz monarca nos paços de Sintra, onde o colhera a peste, da qual em vão tentara fugir abandonando Lisboa precipitadamente. Os elementos congregados por Oliveira Martins para este capitulo 2.º fazem crer que ele iria de par em pitoresco, se os não excedesse, com qualquer dos seus trabalhos anteriores do mesmo género.

Cortesia de expressodalinha
Seriam a nobre epopeia africana, e o clarão das vitórias de Marrocos, o que lhe engrandeceria, iluminando-se as primeiras páginas. Os revezes da fortuna, as amargas humilhações, o abatimento do régio ânimo de Afonso V, descritos no capitulo 1.º, evocavam, com efeito, por contraste natural e espontâneo, a lembrança de um passado de tamanhas glorias. Por isso também, e com o intuito de projectar luz mais forte sobre oposição tão dramática, é que o capitulo se iniciaria descrevendo o regresso triunfal de D. Afonso V da mais brilhante de todas essas expedições, aquela que dera em resultado tomarmos Arzilla,e render-se-nos Tanger.
À frente de 338 velas, reunidos sob as suas ordens para cima de 24.000 homens, o rei português por duas vezes assaltara, com efeito, a primeira daquelas praças, que cedera a essa dupla investida. Tanger abrira logo depois e espontaneamente as suas portas, havendo os mouros evacuado a cidade ao aproximar-se a onda invasora das hostes de Portugal. Fora em Arzilla, depois de assaltada e tomada a grande mesquita, que D. Afonso V armara cavaleiro o Príncipe D. João. Fora ali, em frente do cadáver ensanguentado e ainda quente do Conde de Marialva, patentes os fundos golpes rasgados pelos alfanges dos mouros nas carnes de D. João Coutinho, que o rei exclamara, apontando para tão heróicos restos:
  • «Filho, prasa a Deus que haja por seu serviço serdes vós tão bom cavalleiro como o foi este, cujo corpo aí vedes jazer morto com muitas feridas, que por serviço de Deus e meu hoje recebeu»
 e beijando-o logo após na face, o levantara.

Cortesia de portugalliae
Compreendem-se por tudo isso bem os sentimentos com que a Infanta D. Joana, a Princesa Santa, a quem o pai confiara o reino antes de embarcar para África, sairia dos seus paços em Lisboa ao encontro dos heróis. Revestira-se ela de custosas galas, adornara-se com as pedrarias mais finas como cumpria em momentos de tamanho fausto, mas, sempre firme na piedade, «mandara fazer para a ocasião um hábito de veludo verde rico» assim o narra o cronista Nicolau Dias:
  • . . . porque vestidíi de firme esperança que em Deos tinha, confiava que aquella vez se cumpririam seus desejos. Vestiu-se muito ricamente, e com muita pedraria, de junto da carne levava o áspero cilicio, e camisa de lãa, e acompanhada de todas suas donzellas, de todos os mais officiaes, de pessoas de sua casa, como convinha a seu real estado, encomendando-se primeiro muito a nosso Senhor, sahio com sua tia a senhora dona Felipa irmã da Rainha sua may, a receber el Rey seu pay, e ao Príncipe seu irmão, e toda sua corte, os quaes vinham com tanta festa de alegria quanta merecia a victoria que nosso Senhor teve por bem de lhes dar.
Chegara a apoteose, o momento capital da vida, o remate solene dos triunfos de D. Afonso V, o Africano. E para explicar a primeira, cabia bem fazer então a narrativa destes. Oliveira Martins era assim naturalmente impelido a historiar a expedição de Alcácer-Ceguer em 1458, na qual ainda tomara parte o Infante Navegador, e com o Rei e seu tio, D. Fernando, Duque de Viseu e de Beja, o Marquês de Valença e tantos outros representantes da maior e melhor fidalguia do reino, capitaneando para cima de 26000 homens embarcados em 280 naus, galés e outros navios.  E como sequência a essa narrativa, viria igualmente a da primeira expedição malograda a Tanger, e a da grande e final empresa de Arzilla, coroada
de êxito tão completo, e assinalada pelo triunfo mais cabal.
Após essa narração tão animada pela riqueza de episódios heróicos e reveladores da exuberante seiva nacional, é que seria descrita a peregrinação a França do Rei vencido nos campos de Toro. A viagem fizera-se pelo Mediterrâneo com receio das armadas de Castela, que facilmente poderiam atacar, próximo ás costas da Galiza ou no golfo de Biscaya, a rota que transportara o Rei. Do sul da França seguira o soberano até à cidade de Tours onde Luiz XI o viera visitar à sua pousada «sem nunca ter querido que El-Rei D. Afonso o procurasse na dele, e lhe fizera grandes oferecimentos, que todos arrebentaram em falsidades e enganos».

Cortesia de voltanahistoria
Foi em Novembro de 1476 que se realizou a conferência entre ambos os soberanos, nos termos seguintes, extractados da crónica de Ruy de Pina:
  • Avysado El-Rey D. Afonso, do dia em que El-Rey de França o queria vir ver, vistiosse em vistiduras onestas e Reaes, com propósito de a pée sair, e o tomar na rua, ou ao menos nas escadas dos paços; mas El-Rey de França de reavisado pelo nisso impedir mandou a El-Rey diante dous seus parentes grandes senhores e muy gentis homens, os quaes em El-Rey aballando para sair, cortesmente o detiveram, dizendo que repousasse. Porém, como elles entenderam que El-Rey de França era entrado na salla deram logar que El-Rey D. Afonso saisse, e ambos os Reys, se ajuntaram no meo da salla e com os barretes nas mãos se abraçaram ynclinados os giolhos muy baxos. E tendo El-Rey de França asy abraçado El-Rey, com os olhos no Céu disse que dava muitas graças a Nossa Senhora e a Monseor S. Martym, porque a hum tão prove homem como elle era, fizeram tanta mercêe. Que a seu Reyno e casa o viesse ver e visytar hum tamanho Rey, que elle sempre desejara tanto de ver, e ter por irmaão e amigo, e que porém elle nem cresse que era vindo em Reyno estranho, mas no próprio seu ; porque assy se faria n'elle todo o seu prazer e serviço, como nos de Portugal. E com isto acabado se recolheram aa Camará a entrada da qual, sobre quem se cobreria e entraria primeiro ouve entre ambos grandes e louvados debates. E em fiym El-Rey D. Afonso e deu por vencido, dizendo que havia por milhor ser-lhe bem mandado, que cortes.
Iludido por tão refalsadas exterioridades, o rei português prosseguira na sua viagem, dirigindo-se para a corte de Borgonha.

Continua.
Cortesia de Oliveira Martins/JDACT