quinta-feira, 10 de novembro de 2011

A Geração de Camões. Soropita. Os Líricos. FCG. «A falta de uma edição crítica faz-se enormemente sentir quanto a Soropita, pois deve tratar-se de uma das mais significativas personalidades da transição do estilo maneirista para o barroco»

Cortesia de porosidadeeterea

Primeiros rastos de Camões: na poesia lírica
«Entre os primeiros que compreenderam a importância da obra de Camões e que contribuíram para a sua influência contam-se dois poetas, aliás de valor aparentemente muito desigual, mas que só poderão ser devidamente analisados e apreciados quando se fizer uma edição integral e crítica das suas produções, hoje dispersas e em grande parte, ou praticamente, inéditas.
É um deles André Falcão de Resende (1527-1599), sobrinho do célebre humanista e antiquário quase seu homónimo, contemporâneo e amigo de Camões e tradutor de Horácio, cujas obras manuscritas em português só em 1849, ao que parece, principiaram a ser impressas em Coimbra, numa edição que ainda não estava concluída em 1881 e de que saíram, ao todo, 480 páginas para venda restrita, embora um seu poema religioso, “Microcosmografia”, tenha sido dado à estampa sob o nome de Camões e os “romances” em castelhano, contra os corsários ingleses, tenham sido editados em 1890. Quer pela sua mundivivência platónico-agostiniana, onde o desprezo das coisas mundanas particularmente se acentua, atingindo o amor humano, quer pelo seu estilo, embora mais formalista e próximo do barroco, parece não passar de um epígono camoniano, tanto quanto nos é possível ajuizar de uma obra ainda por editar e por estudar em conjunto.

O outro é o cristão-novo Fernão Rodrigues Lobo, por alcunha Soropita, editor das “Rimas” camonianas, prestigioso advogado em Lisboa e autor de um trabalho de jurisprudência, cuja vida e obras andam confundidas com as de Francisco Rodrigues Lobo, provavelmente seu parente e compatrício de Leiria, mesmo na única e incompleta edição que teve em 1868, apresentada por Camilo Castelo Branco. A falta de uma edição crítica faz-se enormemente sentir quanto a Soropita, pois deve tratar-se de uma das mais significativas personalidades da transição do estilo maneirista para o barroco.

Cortesia de singrandohorizontes

A recente edição fac-símile, embora infelizmente ainda não crítica do “Cancioneiro Fernandes Tomás”, onde este poeta se encontra largamente representado (são-lhe atribuídos 34 sonetos, além de outros dois glosados em oitavas, 6 motes glosados, cerca de uma dezena de composições líricas maiores decassilábicas, uma sátira, 72 cartas e outras prosas por vezes acompanhadas de versos), ajuda-nos a reconstituir uma compleição pessoal mais definida, onde podemos distinguir três facetas distintas e algo contrastantes:
  • um ágil lírico pós-camoniano do amor, um irregular mas por vezes certeiro satírico em prosa e verso, e um poeta religioso menos produtivo mas de rara autenticidade comunicativa.
[…] da amada, evidenciada pela incompreensibilidade radical dos extremos ou contradições sentimentais desencadeadas, «só o mais triste me alegra», por exemplo e, de modo mais sucinto, por um ou outro oximóron cada vez mais formular, “a viva morte, o doce perigo, a liberdade presa” e pela qualidade rara, estranha, peregrina, quer então dizer, excepcional e transcendentemente estrangeira, de tão grande beleza feminina, ainda aliás talhada pelo figurino aureoladamente louro, sereno e distante da Laura petrarquiana.
Vamos exemplificar por um dos melhores sonetos de Soropita a consumação da arte camoniana e, em geral, renascente-maneirista, no sentido de uma máxima fluência eficaz, de um perfeito encadeamento de imagens e razões:

Do grande mar do meu tormento antigo,
Como aurora de amor, sai a esperança,
Vestida já da luz que de si lança
O sol que eu sempre temo e sempre sigo.

Ao seu aparecer, foge o perigo;
Aonde quer que a claridade alcança,
Rompe o véu negro da desconfiança
Que juntamente aprovo e contradigo.

Mas o secreto da alma, inda toldado
Das nuvens negras com que antigamente
A cercou por mil partes meu cuidado,

Se a luz de tanta glória inda não sente,
São efeitos cruéis do mal passado,
Que lhe não deixam ver o bem presente.



Cortesia de wikipedia

Um dos problemas histórico-literários mais apaixonantes é o da emergência e longa perdurabilidade desta lírica-trovadoresca-petrarquista--maneirista que equivale a uma religião literariamente muito ritualizada do amor humano, da Amada, com a sua glória e o seu inferno, com a sua inintelegibilidade radical evidenciada pelos paradoxos, ou “extremos”, quer dos atributos da Amada objecto de adoração, quer da experiência na sua subjectividade do amador, convertendo a Amada no mesmo e transcendente “impossível”, outra palavra-chave destes líricos, no mesmo ponto de coincidência dos contrários que, para os místicos, é o próprio sinal patente da divindade. O caso é que atingimos, neste trânsito para o Barroco, a fase em que tal complexo rito literário de topos e de tropos já revela os limites da sua sinceridade, e até mesmo talvez os das suas possibilidades de combinatória formal. Soropita dá muitas mostras, nesta lírica, quer de um hiperbolismo definidamente barroco, quando o Sol, o azul-celeste e, em geral, as entidades do Céu, na sua ambígua conotação astronómico-teológica, já então destruída por Galileu, lhe servem de encarecimento metafórico à Amada.

Não é de resto Soropita o único autor do tempo a chasquear em verso das condescendências das freiras e a alternar a exaltação do tipo feminino petrarquiano com a de outros menos canónicos:
  • se ele tece o elogio parodístico de uma negra, outros cantarão fregonas (criadas domésticas), mulheres da aldeia e até mesmo de ruela.
Mas o que, literariamente, mais importa é o facto de Soropita nos aparecer como o mais interessante estafeta por enquanto conhecido entre a prosa das cartas camonianas, da “Eufrósina”, e a sátira barroca, ainda hoje quase toda inédita». In Poesia Maneirista, António José Saraiva e Óscar Lopes, FCG HALP, 2001, nº 6208/84.

Cortesia de FC Gulbenkian/JDACT