sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A Montanha Russa de Deus. Alexandre Honrado. «Um pouco alheio a todas estas andanças, Teodoro vê-se de repente a ter alta. Está feliz. Sai do hospital ignorando rebuliços, o vaivém das ambulâncias, os gritos de desespero nas urgências. Uma velha que torceu uma perna, salta à sua frente ao pé coxinho…»

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O Dodelat-sis
«(…) Teodoro perdeu privilégios, distinções, um gabinete que adorava, um posto situado no topo das hierarquias, muito maior do que qualquer outro que alguma vez tivera ou ambicionara, bastante superior aos desejos esperançosos de seus pais que sempre ansiaram o melhor para ele. Por cima da sua cama, a número 96 da enfermaria do Hospital Civil, há um Cristo metálico pendurado de uma cruz quebrada. A visão da cruz, apesar de tudo, já não motivou a sua célebre frase: só tenho de agradecer a Deus... Perante percalços, acidentes, susto s e azares, diante do descobrimento infeliz de que o Mundo é regido por ditadores tarados fiéis a princípios insondáveis e por mãos de férreas atitudes e forças ocultas mas indiscutíveis, Teodoro tinha resvalado de uma fé, ingénua mas sincera, para um acentuado agnosticismo que, muito depressa, se tornara num ateísmo absoluto, escorado em mil indiferenças e na crença firme de que mais vale acreditar em si mesmo, por pouco que seja, do que em projecções espirituais que transcendam quaisquer racionalismos.
Teodoro Anastácio Matos tem razões para estar feliz. Não tem dores. Os analgésicos, muitos, que tomou, não estão a fazer efeito; as suas dores esfumaram-se diante da magia da sua tranquilidade retomada. A multidão de moscas nos tectos e nas paredes que deviam ser brancas, as teias de aranha pardas e os aracnídeos gordos, as tábuas podres do chão, uma árvore, uma caneleira natural de Ceilão, vê-se da janela muito doente a falecer com saudades das regiões tropicais, tudo o faz sentir-se feliz.
Nesse mesmo instante, numa sala recatada da presidência da República, dois homens debruçam-se sobre o ecrã de um computador: - Apaga-se o ficheiro e pronto. É como se Teodoro Anastácio Matos nunca tivesse existido... - Dizias tu que era verde... Pois revelou-se bem maduro... E lixou tudo... - Este não é dos tais a quem só lhe acontece algo por acaso. -É fundamental que o Presidente não venha a saber de nada! - E se não apagássemos apenas o ficheiro? Delete? - DEL!.
Sem o saber, Teodoro Anastácio Matos tem, uma vez mais, razões para estar feliz. Alguém vai introduzir-se esta noite na enfermaria. Trata-se de um assassino experiente, implacável, com uma folha de serviços cheia e gloriosa. (O que é que o distingue de um herói?). Esse assassino irá agarrar numa almofada que colocará sobre o rosto de um homem adormecido sobre o qual irá disparar duas balas fatais com uma pistola munida de um silenciador. Trabalho profissional, eficaz, fulminante. Rápido e, até certo ponto, limpo.
Na manhã seguinte, uma enfermeira dará com o corpo. A mulher vai entrar em pânico. Vão reunir-se mais enfermeiros à sua volta e médicos e mesmo a administração do hospital. A polícia será chamada. Indagará. E acabará por encerrar o processo não só por falta de provas mas principalmente por julgar tratar-se de um crime quase piedoso, cometido, muito provelmente por iniciativa e pedido do próprio doente, um moribundo distante de toda a realidade mundana, doente classificado como em estado terminal, o mesmo é dizer sem hipóteses de retorno da longa marcha. A agitação, apesar da gravidade do caso, acabará por dissipar-se num ápice. Um desastre tremendo, um choque em cadeia numa autoestrada, vem reclamar a mobilização geral e mesmo a necessidade de disponibilizar algumas das camas. Uma prática hospitalar muito comum, ritual cumprido com afinco exemplar.
Um pouco alheio a todas estas andanças, Teodoro vê-se de repente a ter alta. Está feliz. Sai do hospital ignorando rebuliços, o vaivém das ambulâncias, os gritos de desespero nas urgências. Uma velha que torceu uma perna, salta à sua frente ao pé coxinho. Teodoro aproveita; ela chegou de táxi. Teodoro segue nele para a estação de comboios. Tem uma casita na província, com um terreno fértil. De facto, nunca mais se saberá dele até ganhar o primeiro prémio da criação de porcos na Feira da Agricultura alguns anos depois. Mas mesmo então ninguém o associará a acontecimentos porcinos de outra qualquer natureza. Os prémios irão suceder-se na sua vida; especializar-se em florzitas e mesmo assim ninguém lhe dará mais protagonismo do que o imediato e sombrio...».

In Alexandre Honrado, A Montanha Russa de Deus, Editorial Bizâncio, 2001, ISBN 972-53-0114-5.

Cortesia de E. Bizâncio/JDACT