terça-feira, 6 de agosto de 2013

José do Telhado. Aquela Casa Triste… Camilo Castelo Branco. «A civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham todos os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente. Saquear a ferro e fogo é roubo!»


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José do Telhado Agora
«Este nosso Portugal é um país em que nem pode ser-se salteador de fama, de estrondo, de feroz sublimidade! Tudo aqui é pequeno: nem os ladrões chegam à craveira dos ladrões dos outros países! Todas as vocações morrem de garrote, quando se manifestam e apontam a extraordinários destinos. A Calábria, a ponta da bota que chuta no povo da Sicília, é um desprezado retalho do mundo; mas tem dado salteadores de renome. Toda aquela Itália, fica na Europa, tão rica, tão fértil de pintores, escultores, maestros, cantores, bailarinas, jogadores de futebol, até produzir quadrilhas de ladrões a bafejou o seu bom génio! Aí corre um grosso livro intitulado, Salteadores celebres de Itália (Europa). É ver como debaixo daquele céu está abalizada em alto ponto a graduação das vocações. Tudo grande, tudo magnífico, tudo fadado a viver com os vindouros, e a prelibar os deleites de sua imortalidade. Schiller, Victor Hugo, Charles Nodier, se fada má lhes malfadasse o berço em Portugal, teriam de inventar bandoleiros ilustres, a não quererem ir descrevê-los ao natural nos pináculos da república. Apenas um salteador noviço vinga destramente os primeiros ensaios numa escalada, sai a campo o administrador com os cabos, o alferes com o destacamento, o jornalismo com as suas lamúrias em defesa da propriedade, e a vocação do salteador gora-se nas mãos da justiça (será constitucional?)
Faltava o fio eléctrico para tolher que vinguem os génios espicaçados pelo amor ao dinheiro amuado nas arcas dos paupérrimos proprietários, inimigos de empresas industriais, e da circulação monetária, artéria de primeira ordem na prosperidade de um país. Faltava o telégrafo para matar à nascença as iniciativas auspiciosas. Apenas lá das povoações serranas desce à vila ou cidade a nova de um roubo, o arame palpita de horror, e a cara do ladrão é para logo litografada na fantasia de todos os esbirros sertanejos. A civilização é a rasa da igualdade: desadora as distinções; é forçoso que os bandoleiros tenham todos os mesmos tamanhos, e roubem civilizadamente, urbanamente.
Ladrão de encruzilhada, que traz o peito à bala e o bacamarte apontado ao inimigo, esse há-de ser o bode expiatório dos seus confrades, mais alumiados e aquecidos do sol benéfico da civilização. Roubar industriosamente é engenho; saquear a ferro e fogo é roubo!. Os daquela escola tropeçam nas honras, nos títulos, nos joelhos dos servis, que lhes rojam em venal humilhação; os outros, quando escorregam, acham-se encravados nos artigos 343, 349, 87, 433, 351, e mais cento e setenta artigos do Código Penal, Civil ou Administrativo.
Diz algum tanto como exemplo desta lastimável anomalia a história de José Teixeira da Silva do Telhado, o mais afamado salteador deste século. Vulto de romance não o tem, porque neste país nem se completam ladrões para o romance. Disse-me uma dama francesa de eminente espírito, que em Portugal era a natureza, o céu e o ar que faziam os romances. Nem isso, minha senhora. Aqui anda sempre o gume do prosaísmo a podar os rebentões da natureza, mal eles infloram. Frutos de servir para a novela levantada da comezinha chaneza de um conto à lareira, nem mesmo os deixam amadurar na fama e nas façanhas de um salteador. Se não, vejam: José do Telhado nasceu em 1816, na aldeia de Castelões, comarca de Penafiel. Seu pai era o famigerado Joaquim do Telhado, capitão de ladrões, valente como as armas, e raio devastador em franceses que ele matava, porque eram franceses, e porque eram ladrões, posto que, na qualidade de membro da nação espoliada, o senhor Joaquim chamasse somente a si o que era fazenda nacional. Um tio-avô de José Teixeira, chamado ele o Sodiano, já tinha sido salteador de porte, e infestara o Marão durante muitos anos. Se arrepiássemos carreira na linhagem do senhor José do Telhado, iríamos encontrar-lhe um avoengo em Roma, (talvez na Calábria?) com uma sabina roubada no Como». In Camilo Castelo Branco, Aquela Casa Triste, Brevíssima Portuguesa, Livraria Civilização Editora, Porto, 1995, ISBN 972-26-1214-X.

Cortesia da LCE/JDACT