terça-feira, 27 de agosto de 2013

Camões. Poema. Camoneana 423. Almeida Garrett. «Saudade! Gosto amargo de infelizes, delicioso pungir de acerbo espinho, que me estás repassando o íntimo peito com dor, que os seios d'alma dilacera. - Mas dor que tem prazeres; - Saudade!»

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Advertência
A índole do assumpto deste poema é absolutamente nova; e assim não tive eu exemplar, a que me arrimasse, nem norte, que seguisse

Por máres nunca d'antes navegados.

Conheço que elle está fóra das regras; e que, se pelos princípios clássicos o quiserem julgar, não encontrarão ahi senão irregularidades, e defeitos. Porém declaro desde já que não olhei a regras, nem a
princípios, que não consultei Horácio, nem Aristóteles; mas fui insensivelmente de pós o coração, e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos da arte, e operações combinadas do espirito. Também o não fiz por imitar o stylo de Byron, que tam ridiculamente aqui macaqueião hoje os Francezes a torto, e a direito, sem se lembrarem que para tomar as liberdades de Byron, e commetter impunemente seus  atrevimentos, é mister haver um tal ingenho, e talento, que com um só lampeijo de sua luz offusca todos os descuidos, e impede a vista deslumbrada de notar qualquer imperfeição. Não sou clássico, nem romântico: de mim digo que não tenho seita, nem partido em poesia (assim como em cousa nenhuma); e por isso me deixo ir por onde me levão minhas ideias boas ou más, e nem procuro converter as dos outros, nem inverter as minhas nas delles: isso é para litteratos de outra polpa, amigos de disputas, e questões, que eu aborreço.
A acção do poema é a composição, e publicação dos Lusiadas; os outros successos, que occorrem, são de facto episodicos, mas fiz per os ligar com a principal acção. Tam sabida é afabula, ou enredo dos Lusiadas, e a vida de seu auctor, que nem tenho mais explicações que fazer a este respeito; nem será diffícil ao leitor o distinguir, no meu opusculo, o histórico do imaginado: mas não separará de certo muita cousa, porque das mesmas ficções, que introduzi, tem sua base verdadeira as mais dellas.
Sóbre orthographia, (que é força cada um fazer a sua entre nós, por que a não temos) direi só que segui sempre a ethymologia em razão composta com a pronuncia; que accentos, só os puz onde, sem elles, a palavra se confundiria com outra; e que de boamente seguirei qualquer methodo mais accertado, apenas haja algum geral, e racionável em portuguez: o que tam fácil, e simples seria, se a nossa academia, e governo em tam importante cousa se empenhassem.
Hoje me veio ás mãos uma obra em francez de M. Denis, Scènes de la nature sous les tropiques, onde encontro um episodio sobre Camões, em que há parecenças com a minha obrinha. Como isto foi, melhor o dirá elle que eu, pois este poema se acha composto desde Julho passado, começou-se a imprimir em Janeiro corrente, e sai acabado da imprensa, hoje 22 de Fevereiro de 1825; a obra de M. Denis publicou-se em Dezembro p.p. É notável a coincidência, e muito me lisongeia.

CAMÕES
Canto Primeiro

Esta he a ditosa pátria minha amada,
A' qual se o ceo me dá que eu sem perigo
Torne com esta empresa já acabada,
Acabe-se ésta luz alli comigo.
In LUS., cant. III, est. 21

Saudade! Gosto amargo de infelizes,
Delicioso pungir de acerbo espinho,
Que me estás repassando o íntimo peito
Com dor, que os seios d'alma dilacera,
 - Mas dor que tem prazeres; - Saudade!
Mysterioso numen, que aviventas
Corações, que estalárão, e gottejão,
Não já sangue de vida, mas delgado
Soro de estanques lagrimas; - Saudade

Mavioso nome, que Iam meigo soas
Nos lusitanos lábios, não sabido
Das orgulhosas bocas dos Sycambros,
Destas alheias terras; - Oh Saudade!
Magico numen, que transportas a alma
Do amigo ausente ao solitário amigo,
Do vago amante á amada inconsolável,
E até do triste do infeliz proscripto,
 - Dos entes o misérrimo na terra -
Ao regaço da pátria em sonhos levas,
 - Sonhos, que são mais doces do que amargo,
Cruel é o despertar; - Celeste numen,
Se já teus dons cantei e os teus rigores
Em sentidas endeixas; se piedoso
Em teus altares húmidos de pranto
Depuz o coração, que inda arquejava
Quando o arranquei do peito malsoffrido
A' foz do Tejo, - Ao Tejo, o' deusa, ao Tejo
Me leva o pensamento, que esvoaça
Timido, e acovardado entre os olmedos.
Que as pobres aguas deste Sena regâo,
 - Do outrora ovante Sena. Vem no carro,
Que pardas rôllas gemedoras lirão,
A alma buscar-me, que por li suspira.
[…]

In Almeida Garrett, Camões, Poema, Camoneana 423, Paris, R. 32594, Livraria Nacional e Estrangeira, Rue Mignon, 2, faub. St. Germain, Biblioteca Nacional de Portugal (Biblioteca Nacional de Lisboa) 1825.

Cortesia da BNP/JDACT