terça-feira, 20 de agosto de 2013

Marânus. Poesia. Teixeira de Pascoaes. «Bela, formosa e linda, em sua graça, tangível e corpórea, o sangue vivo inundava de rósea claridade o seu busto perfeito. Um primitivo ar inocente e agreste lhe aquecia a brancura da testa»

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Marânus. Marânus e Eleonor
[…]
II
Marânus e a Pastora
Já na serra fronteira, a deusa Aurora
erguia o facho aceso; e já, nas fontes,
os seus cabelos de oiro derramava,
e nas encostas íngremes dos montes,
quando a brisa, pousando etérea mão
no rosto de Marânus, o acordou.
E, animado de nova comoção.
Olhava as formas belas da Natura.

Que infinita alegria misteriosa
parecia baixar, na luz do sol,
e inundar a paisagem radiosa,
cravejada de lumes e de cores!

E Marânus sorria, num desejo
alado de voar! E, no seu corpo,
um vago, esparso, indefinido beijo
acendia-lhe o sangue alvoroçado.
Cantava, como as aves matutinas,
unicamente por sentir a vida,
por se sentir viver!
O céu azul
era uma flor dos vales desprendida...
Seus amorosos cânticos dispersos
penetravam de humano sentimento
este lugar sozinho, onde repousa.

A noite e o seu infindo esquecimento...
E onde a aurora desperta uma oração,
nas ramagens extáticas das árvores,
que vivem mais de luar e solidão
do que da própria terra onde nasceram.

E, neste sítio amável, os pinheiros
falavam, de contentes e libertos
dos nocturnos e torvos nevoeiros,
no céu vibrante de asas e de luz.

Ali perto, uma fonte seu murmúrio
de glória, ao sol de Apolo, murmurava;
água límpida e boa, que um milagre
em límpida harmonia transformava.
E Marânus ouvira alegremente,
pela primeira vez, a clara fonte,
como se ela, crescendo, de repente,
se pusesse a cantar, em alta voz!.
E, espantado, voltou-se para aquela
pura canção das águas, avistando
a pequena distância uma donzela,
que apascentava, triste, o seu rebanho.

Bela, formosa e linda, em sua graça,
tangível e corpórea, o sangue vivo
inundava de rósea claridade
o seu busto perfeito. Um primitivo
ar inocente e agreste lhe aquecia
a brancura da testa. E, nos seus olhos
dum negro sério e místico, sorria.
A infância, a idade de oiro. E sua virgem,
diáfana atitude harmoniosa
subia, para o céu, da terra escura,
num ímpeto, tão firme e embrandecido,
que era uma estátua em mármore e ternura.
[…]

In Teixeira de Pascoaes, Marânus, Prefácio de Eduardo Lourenço, Assírio & Alvim, Lisboa, 1990, ISBN 972-37-0261-4.

Cortesia de Assírio & Alvim/JDACT