quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Dos Feitos de Cristóvão da Gama em Etiópia. Miguel Castanhoso. «… foi então que Christovam da Gama com quatrocentos soldados portugueses entrou em Ethiopia, e com o seu auxilio o rei foi restabelecido no seu antigo poderio, o reino libertado da oppressão dos musulmanos»

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Introducção
«A empresa de Christovam da Gama e dos quatrocentos soldados, que com elle entraram em Ethiopia em 1541, é uma das mais heroicas dos Portugueses no Oriente, de maior importancia religiosa e politica, e de mais interesse militar. Havia mais de doze annos que o imam Ahmad ben Ibrahim al-Ghazi, conhecido mais commummente pelo sobrenome de Granhe (canhoto), com um exercito, composto de musulmanos de Adal e de Turcos mercenarios, havia invadido o antigo reino de Ethiopia, vencera o seu rei em muitas batalhas, senhoreara quasi todas as provincias do seu reino, destruira numerosas aldeias, incendiara as egrejas, e vendia como escravos aquelles que não se convertiam ao islamismo e não se submettiam ao seu dominio, foi então que Christovam da Gama com quatrocentos soldados portugueses entrou em Ethiopia, e com o seu auxilio o rei foi restabelecido no seu antigo poderio, o reino libertado da oppressão dos musulmanos, e por ventura os habitantes d'aquelle paiz foram salvos de renegar a religião christã.
Esta empresa foi perpetrada nas mais extraordinárias condições, e houve -innumeras e grandes dificuldades a vencer. A marcha effectuou-se por um sertão sem caminhos regulares; os portugueses primeiramente percorreram um paiz arido debaixo de um sol ardentíssimo; depois subiram altissimas montanhas por ingremes veredas, e transpuzeram profundos rios e torrentes, guardando sempre a mais rigorosa disciplina e regular ordem tactica. Para transportar a artilharia, munições e mantimentos fizeram os carros necessarios, tendo primeiramente de cortar as arvores, serrar os troncos e afeiçoar a madeira; e ainda muitas vezes os carros foram desfeitos, e as peças de artilharia desmontadas e levadas ás costas cada uma das suas partes. No estacionamento o arraial foi fortificado com tranqueiras e vallos, e guardado com vigilancia. No combate luctaram com prospero successo com um exercito muitas vezes superior em numero, aguerrido e victorioso, commandado por um capitão audacíssimo e feliz, cujo nome era o terror e espanto de toda Ethiopia.
Aos soldados portugueses animava-os o mais vivo desejo de honrar a patria e o ardente zelo da religião christã; e como diz o chronista do rei de Ethiopia, eram varões valorosos e constantes, que estavam sequiosos de pelejas como o lobo e famintos de combates como o leão. O seu capitão era um moço activo e corajoso, educado na guerra desde os mais tenros annos; e como diz o mesmo chronista, valoroso e constante, cujo coração era como o ferro e o bronze no combate. Esse moco foi filho de Vasco da Gama, o grande navegador, que fez o descobrimento do caminho maritimo da India.

Christovam da Gama
Vasco da Gama, 1º conde da Vidigueira, e almirante do mar da India, foi casado com D. Catharina de Athaide; d'este matrimonio nasceram: 1. Francisco da Gama, 2º conde da Vidigueira, almirante do mar da India, e Estribeiro mór d'el Rei João III.

NOTA: No manuscripto B-6-14 da Bibliotheca Nacional de Lisboa, actualmente Biblioteca Nacional de Portugal, attribuido a Diogo do Couto, referem-se os successos de Vasco da Gama e de seus filhos no Oriente. Este manuscripto é um livro de papel de 207 folhas de 0,29 X 0,21, encadernado, escripto com tres letras differentes do seculo XVIII. Tem por titulo: Tratado de todas as cousas socedidas ao valeroso Capitão Dom Vasco da Gama primeiro conde da Vidigueira: almirante do Mar da India: no descobrimento, e conquistas dos Mares, e Terras do Oriente: e de todas as vezes que ha India passou, e das cousas que socederam nella a todos seus filhos. Dirigido a Dom Francisco da Gama conde da Vidigueira almirante do mar Indico, e visorrei da India. Por Diogo do Couto Cronista e Guarda mor da Torre do Tombo da India. A dedicatoria é datada de Goa de 16 de Novembro de 1599. O tratado compõe se de duas partes; na primeira contam-se os successos de Dom Vasco da Gama nas suas tres viagens á India; na segunda referem-se os feitos de seus filhos Dom Estevam, Dom Paulo, Dom Christovam e Dom Pedro da Silva no Oriente. A narração e identica á das Decadas da Asia de Barros e de Couto, umas vezes abreviada, e ouras reproduzida verbalmente.

In Miguel Castanhoso, Dos Feitos de D. Cristóvão da Gama em Etiópia, segundo o original impresso em Fevereiro do anno de MDCCCXCVIII, Imprensa Nacional de Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 1953.

Cortesia da SGL/JDACT