quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O Homem e o Livro. História dos Livros. M. Iline. «Este primeiro livro não se parece nada com os dos nossos dias. Tinha pés e mãos e não estava arrumado numa prateleira: sabia falar e até cantar. Enfim, ‘era um livro vivo!’ “Era um homem”»

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O Livro Vivo
«Como seria o primeiro livro? Seria impresso ou escrito à mão? Seria de papel ou de qualquer outro material? E se, por acaso, ainda existe, em que biblioteca se poderá encontrar?
Conta-se que houve uma vez um homem suficientemente ingénuo para querer procurar este primeiro livro em todas as bibliotecas do mundo. Passava dias inteiros a rebuscar em montes de livros carcomidos e amarelecidos pelo tempo. Já tinha o fato e o calçado cobertos duma espessa camada de pó, como se acabasse de chegar duma longa viagem por uma estrada poeirenta. Por fim, caiu duma daquelas grandes escadas que se apoiam nas prateleiras das bibliotecas, e morreu. Mas, ainda que ele tivesse vivido mais cem anos, as suas pesquisas não teriam tido resultado. O primeiro livro já tinha aparecido na terra muitos milhares de anos antes de ele nascer.
Este primeiro livro não se parece nada com os dos nossos dias. Tinha pés e mãos e não estava arrumado numa prateleira: sabia falar e até cantar. Enfim, era um livro vivo! Era um homem. Nesses tempos remotos, quando os homens não sabiam ler nem escrever, quando não existiam nem livros, nem papel, nem tinta, nem caneta, as tradições dos antepassados, as leis e as crenças não se conservavam em prateleiras mas na memória dos homens. Estes morriam, mas as tradições continuavam vivas e transmitiam-se de pais para filhos. Ao passarem de boca em boca, as histórias modificavam-se um tanto: acrescentavam-se umas coisas e esqueciam-se outras. O tempo polia-as como a água dum rio pule as pedras. A lenda dum bom guerreiro tornava-se a história dum gigante que não temia nem o dardo nem as setas, que corria pelos bosques como um lobo e dominava as alturas como uma águia.
Nos recantos ignorados deste mundo há ainda uns velhotes que contam estas histórias de que nunca poderíamos encontrar a origem escrita; chamam a essas histórias contos de fadas ou lendas. Há muito tempo, na Grécia, costumava-se cantar a Ilíada e a Odisseia, que eram as histórias das guerras havidas entre gregos e troianos. E passaram séculos antes que se escrevesse o que se cantava. Um cantor, ou aedo, como lhe chamavam os gregos, era sempre bem recebido numa festa.
Imaginemo-lo sentado, encostado a uma coluna larga, com a lira pendurada por cima dele. O banquete está quase no fim, estão vazias as grandes travessas de carne e vazios estão também os cestos de pão. Acabaram de retirar as taças de ouro de duas asas; os convidados estão satisfeitos e esperam a música. O aedo pega na lira, tange as cordas e começa a longa história do astucioso Ulisses e do valoroso Aquiles. Os cantos dos aedos eram lindos, mas os nossos livros são muito mais agradáveis porque, com alguns escudos, podemos comprar uma edição da Ilíada que se traz facilmente na algibeira. E este livrinho não nos pede nada, nem de comer nem de beber, e nunca está doente nem morre. E isto faz-me lembrar uma história: História de uma Biblioteca Viva.
Era uma vez, em Roma, um comerciante rico que se chamava Itelius. Contam-se maravilhas das suas fabulosas riquezas. O seu palácio era tão vasto que nele teriam cabido todos os habitantes da cidade. Reunia todos os dias, à mesa, trezentas pessoas escolhidas entre os cidadãos mais ilustres e mais cultos. Não havia só uma mesa em casa de Itelius; havia trinta, todas cobertas de magníficas toalhas bordadas a ouro.
Itelius dava aos seus convidados os mais finos cozinhados, mas, nesse tempo, não se ofereciam aos convidados só pratos escolhidos: era preciso dar-lhes também os prazeres duma conversa espirituosa. Ora, a Itelius nada faltava, excepto a instrução. Mal sabia ler. As pessoas que aceitavam os seus convites com prazer, riam dele à socapa.
Era-lhe impossível sustentar uma conversa à mesa, e se, por acaso, conseguia que lhe dessem atenção, reparava que os convidados reprimiam a custo os seus sorrisos. Não podia suportar semelhante coisa, Mas era demasiado preguiçoso para estar muito tempo a ler um livro e não estava habituado a maçar-se. Itelius pensou muito tempo na maneira de remediar o caso e, finalmente, achou o que lhe era preciso».

In M. Iline, O Homem e o Livro, História dos Livros, Biblioteca Cosmos, direcção de Bento de Jesus Caraça, nº 1, Epopeias Humanas, Lisboa, 1947.

Cortesia de Cosmos/JDACT