domingo, 2 de julho de 2017

Diz-me Quem Sou. Julia Navarro. «Que idade tens? A pergunta irritou-me. Ela sabia perfeitamente que eu estava na casa dos trinta, que era o mais velho dos primos»

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Guillermo
«És um falhado. Sou uma pessoa decente. A minha tia ergueu os olhos dos papéis que tinha nas mãos. Estava a lê-los como se o seu conteúdo representasse uma novidade para ela. Mas não era assim. Naquele currículo, estava resumido o meu breve e desastrado percurso profissional. Fitou-me com curiosidade e continuou a ler, ainda que eu soubesse que não haveria muito mais para ler. Chamara-me falhado não com a intenção de me ofender, mas como quem constata algo evidente. O gabinete da minha tia era intimidante. Na verdade, aquilo que mais me perturbava nela era a sua atitude altiva e distante, como se o facto de ter triunfado na vida lhe permitisse olhar para o resto da família de nariz empinado. Não gostava dela, mas eu também nunca havia sido o seu sobrinho favorito, pelo que fiquei surpreendido quando a minha mãe me disse que a sua irmã pretendia ver-me com urgência.
A tia Marta tornara-se a matriarca da família, dominando inclusivamente os seus outros dois irmãos, o tio Gaspar e o tio Fabián. Era consultada para qualquer assunto e ninguém tomava uma decisão que não tivesse sido previamente aprovada por ela. A bem dizer, eu era o único que a evitava e que, ao contrário dos meus primos, nunca procurava a sua aprovação. Mas ali estava ela, orgulhosa por ter salvado e triplicado o património familiar, um negócio dedicado à compra, venda e reparação de maquinaria, graças, entre outas razões, ao conveniente casamento com o seu bondoso marido, o tio Miguel, por quem eu nutria uma simpatia secreta. O tio Miguel tinha herdado alguns edifícios no centro de Madrid, cujos inquilinos lhe pagavam avultadas rendas mensais. Exceptuando as reuniões uma vez por mês com o administrador dos edifícios, nunca trabalhara. A sua única preocupação era colecionar livros raros, jogar golfe e, sob qualquer pretexto, escapar ao olhar vigilante da minha tia Marta, a quem delegara de bom grado a responsabilidade de se reunir mensalmente com o administrador, sabendo que ela possuía a inteligência e a paixão necessárias para acertar em tudo aquilo que fazia.
Pelos vistos, ao falhanço chamas decência. Significará isso que todos aqueles que triunfam na vida são indecentes? Estive quase a dizer que sim, mas, como tal atitude não agradaria à minha mãe, decidi-me por uma resposta mais neutra. Como sabes, na minha profissão, ser decente costuma significar acabar no desemprego. Não calculas como está o jornalismo neste país. Ou estás alinhado com a direita ou com a esquerda. Não passas de uma correia de transmissão para as ideias de uns ou de outros. Limitarmo-nos a reportar aquilo que acontece e a opinar imparcialmente conduz-nos à marginalização e ao desemprego. Sempre julguei que fosses um rapaz com ideias de esquerda, disse a minha tia com uma certa ironia. E, agora, é a esquerda quem governa...
Sim, mas o governo pretende que os jornalistas da mesma corrente ideológica fechem os olhos e calem a boca perante os seus erros. Criticá-lo equivale a ser-se marginalizado. Deixam de te considerar um dos seus e claro que, como também não estás vinculado aos outros, acabas por ficar em terra de ninguém, ou seja, no desemprego, como eu estou. No teu currículo, dizes que trabalhas num jornal digital. Que idade tens? A pergunta irritou-me. Ela sabia perfeitamente que eu estava na casa dos trinta, que era o mais velho dos primos. Mas era a sua forma de demonstrar o desinteresse que sentia por mim. Assim, decidi não lhe dizer a minha idade, dado ser evidente que ela já a sabia.
Sim, faço crítica literária num jornal da Internet. Não encontrei coisa melhor, mas, pelo menos, não tenho de pedir dinheiro à minha mãe para comprar tabaco. A minha tia Marta observou-me de cima a baixo, como se fosse a primeira vez que me visse, parecendo hesitar antes de se decidir por me fazer uma proposta. Bem..., vou oferecer-te um emprego, que aliás será bem pago. Confio que estejas à altura daquilo que esperamos de ti. Não sei aquilo que pretendes oferecer, mas a minha resposta é não. Não gosto dos gabinetes de imprensa das empresas. Se vim ter contigo foi porque a minha mãe me pediu». In Julia Navarro, Diz-me quem Sou, 2010, Bertrand Editora, 2011, ISBN 978-972-252-367-7.

Cortesia de BertrandE/JDACT