quinta-feira, 27 de julho de 2017

O Ideário de São Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária. Nuno V. Oliveira. «Asseguro-vos que embora agora os toleres, se não se emendam sofrerão muito em breve um juízo tão rigoroso quanto terrível é o mal que tramam».

Cortesia de wikipedia e jdact

 «(…) A atitude do abade de Claraval é difícil de compreender. Na verdade, a que se deverá o silêncio de um homem tão empenhado no confronto com o Islão na recusa em elaborar semelhante obra? Poderia o mosteiro de Claraval possuir um conhecimento prévio desses textos muçulmanos? Terá São Bernardo ocultado, dessa forma, o seu interesse, estritamente intelectual, como o do abade de Cluny, por esses escritos? Provavelmente nunca viremos a saber se a sua obra literária terá sido realizada tendo algum contacto com os textos dos seus inimigos espirituais. Quanto ao fundador da ordem cisterciense, Estêvão Harding, de origem inglesa, sabemos que recorreu a sábios judeus para o ajudarem na redacção criteriosa da Bíblia de Cister. Esses intérpretes dominavam os textos hebraicos e, em especial, o Talmude, embora não se saiba se poderiam ler ou falar o árabe. Do que subsiste da biblioteca de Claraval, actualmente dispersa por Troyes e Montpellier, não é possível discernir se ela possuiria qualquer obra traduzida de fontes muçulmanas. A razão desta longa série de observações está relacionada com o conhecimento muito preciso que São Bernardo parece ter tido do Islão e da sua mística guerreira. O Elogio à nova Milícia, em que o abade de Claraval faz a apologia do combatente espiritual, asceta e cavaleiro, assemelha-se de facto ao guerreiro da jihad, o seguidor de Maomé, ele próprio um cavaleiro. Sabemos que o Templo teve como objectivo principal o combate pela defesa da Terra Santa, e que constituiu a resposta cristã à Crescentada, mas ainda pouco se tem investigado as influências que ele eventualmente terá recebido desta, mesmo por uma via de oposição. A expansão da fé através da espada é algo a que se assiste desde Constantino e a ela o nascimento do Islão e o fluxo das Cruzadas muito devem. No entanto, em ambos os casos, esquece-se por vezes que a persuasão exerceu um papel tão importante como o confronto armado. Neste sentido, como enquadrar o emprego da força na afirmação e difusão da verdade religiosa em vez da via menos belicista? A resposta parece advir do facto de o recurso à violência não poder deixar de se exercer quando estão em jogo determinadas circunstâncias fundamentais, como a defesa espiritual dos lugares sagrados, num paralelo com a atitude de Cristo perante os vendilhões do Templo.
Se para o Islão a guerra foi sempre entendida como uma necessidade inerente ao triunfo da sua causa, Maomé promete o Paraíso aos soldados mortos na jihad, para o Cristianismo das origens a recusa da força das armas e da violência foi total. O carácter pacifista era uma realidade nos primeiros séculos da história da Igreja, à imagem de Cristo, que se deixou submeter à autoridade do seu tempo, propagou o amor pelo inimigo e, por fim, preso pelos soldados romanos, não se defendeu e impediu a intromissão dos discípulos, deixando-se crucificar. No entanto, começou a impor-se, do lado dos homens da Igreja, uma nova concepção, baseada fundamentalmente em Santo Agostinho, na qual, mediante certas circunstâncias, como a da invasão de um território pelo inimigo, haveria lugar a uma guerra justa, para o recuperar e punir os criminosos. Esta atitude que emerge dos escritos do bispo de Hipona era baseada, ela própria, no conceito de guerra sagrada que emanava dos textos do Antigo Testamento, vindo a influenciar toda a teologia medieval e, sobretudo, São Bernardo que, como ninguém havia feito antes no Ocidente, veio a valorizar e sacralizar a função militar. O seu objectivo era, então, através de um combate honesto, devolver o território a Cristo, restabelecendo a sua herança, como se os cruzados fossem os novos hebreus em busca da terra prometida. Por isso, o abade de Claraval insiste que os cruzados devem realizar uma conversão interior, ascética e expiatória, antes de partirem para o Oriente. Do mesmo modo, ao dirigir-se aos Templários, permanentes cruzados em vigília, assegura-lhes que a morte de infiéis em batalha leal não é um homicídio, mas um malicídio.
Devemos igualmente tentar compreender o apoio que o santo vai dar à Ordem do Templo. A regra que redigiu para esta e o Tratado apologético sobre as glórias da nova milícia que lhe dedicou demonstram as relações de São Bernardo com a Cavalaria. Se existe um domínio no qual o abade de Claraval esteja devidamente informado é o domínio cavaleiresco. Pelas suas origens na nobreza, ele era conhecedor do mundo dos senhores e dos cavaleiros. Acompanhou-os na sua adolescência, altura em que decide entrar para Cister, conservando ao longo da vida as suas amizades entre a aristocracia laica. Considera os monges como combatentes espirituais, e na sua escrita é fácil denotar um leque variado de imagens associadas à arte da guerra, em que não hesita em considerar Claraval um mosteiro fortificado, uma espécie de cavalaria transfigurada. No seu 3º Sermão da obra In Dedicatione Ecclesiae, o cisterciense compara essa sua casa, a Igreja, à fortificação do rei eterno fustigado pelos seus inimigos. Daí as alusões precisas aos muros, aos fossos, às armas defensivas e ofensivas, aos víveres que é necessário acumular para que o terreno do Senhor resista: irmãos, esta casa é uma fortificação de Deus, sitiada pelo inimigo. Todos os que jurámos sua bandeira e nos alistámos na milícia necessitamos de três coisas para defender esta praça: trincheiras, armas e víveres. Quais são as trincheiras? Escutemos o Profeta: Temos uma cidade forte; estão postas para a salvar muralhas e antemuros. A muralha é a continência e o antemuro a paciência. (...). O mesmo Salvador se converteu em muralha e antemuro da sua cidade. (...). Também devemos ter bem preparadas as armas, as armas espirituais, empunhando-as com a força de Deus; não apenas para resistir ao inimigo, mas para o atacar e derrotar com bravura.
O abade de Claraval chega mesmo a estabelecer a analogia entre o mosteiro e o castelo como se se tratasse de uma única realidade: arrebatas a Cristo um magnífico castelo, se entregas Claraval a seu inimigo. Ele, Claraval, recebe cada ano excelentes rendas; há o costume de introduzir no seu campo fortificado um copioso espólio retirado aos inimigos. Ele tem uma inteira confiança na sua força. Aqui estão os que ele resgatou das mãos do inimigo, reunindo de todos os países: norte e sul, levante e poente. São Bernardo não poderia ser mais eloquente. Os Sermões para a Dedicação da Igreja revelam, de igual modo, uma visão teológica, na qual se associa a figura de Deus a uma cidade defendida por uma fortificação. Tão guarnecida está a fortificação da cidade do Senhor que não existe o mais leve temor, contanto que actuemos fiel e valorosamente, isto é, que não sejamos traidores, cobardes, nem ociosos. São traidores os que tentam introduzir o inimigo na praça do Senhor, por exemplo, os difamadores, a quem Deus aborrece; e os que semeiam discórdias e fomentam escândalos. (...) ... é um traidor quem pretende introduzir um vício qualquer nesta casa, e converter este templo de Deus numa cova de bandidos. Graças a Deus há muito poucos desta espécie entre nós. Mas às vezes não falta quem se ponha a falar ao inimigo e faça um pacto com a morte; é dizer, fazer o possível por alterar a disciplina da Ordem, reduzir o fervor, alterar a paz ou ferir a caridade. Livremo-nos destes quanto pudermos, imitando Jesus que não se fiava neles. Asseguro-vos que embora agora os toleres, se não se emendam sofrerão muito em breve um juízo tão rigoroso quanto terrível é o mal que tramam». In Nuno Villamariz Oliveira, O Ideário de São Bernardo e a sua Influência na Arquitectura Militar Templária, Revista Medievalista, Ano 2, Nº 2, Instituto de Estudos Medievais, FCSH-UNL, FCT, 2006, ISSN 1646-740X.

Cortesia de RMedievalista/JDACT