quinta-feira, 18 de março de 2021

A Caverna. José Saramago. «A região é fosca, suja, não merece que a olhemos duas vezes. Alguém deu a estas enormes extensões de aparência nada campestre o nome técnico de Cintura Agrícola…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«O homem que conduz a camioneta chama-se Cipriano Algor, é oleiro de profissão e tem sessenta e quatro anos, posto que à vista pareça menos idoso. O homem que está sentado ao lado dele é o genro, chama-se Marçal Gacho, e ainda não chegou aos trinta. De todo o modo, com a cara que tem, ninguém lhe daria tantos. Como já se terá reparado, tanto um como outro levam colados ao nome próprio uns apelidos insólitos cuja origem, significado e motivo desconhecem. O mais provável será sentirem-se desgostosos se alguma vez vierem a saber que aquele algor significa frio intenso do corpo, prenunciador de febre, e que o gacho é nada mais nada menos que a parte do pescoço do boi em que assenta a canga. O mais novo veste uniforme, mas não está armado. O mais velho traja um casaco civil e umas calças mais ou menos a condizer, leva a camisa sobriamente fechada no colarinho, sem gravata. As mãos que manejam o volante são grandes e fortes, de camponês, e, não obstante talvez por efeito do quotidiano contacto com as maciezas da argila a que o ofício obriga, prometem sensibilidade. Na mão direita de Marçal Gacho não há nada de particular, mas as costas da mão esquerda apresentam uma cicatriz com aspecto de queimadura, uma marca em diagonal que vai da base do polegar à base do dedo mínimo. A camioneta não merece esse nome, é apenas uma furgoneta de tamanho médio, de um modelo fora de moda, e vai carregada de louça. Quando os dois homens saíram de casa, vinte quilómetros atrás, o céu ainda mal começara a clarear, agora a manhã já pôs no mundo luz bastante para que se possa observar a cicatriz de Marçal Gacho e adivinhar a sensibilidade das mãos de Cipriano Algor. Vêm viajando a velocidade reduzida por causa da fragilidade da carga e também pela irregularidade do pavimento da estrada. A entrega de mercadorias não consideradas de primeira ou segunda necessidades, como é o caso das louças rústicas, faz-se, de acordo com os horários fixados, a meio da manhã, e se estes dois homens madrugaram tanto foi porque Marçal Gacho tem de marcar o ponto pelo menos meia hora antes de as portas do Centro serem abertas ao público. Nos dias em que não traz o genro, mas tem louças para transportar, Cipriano Algor não precisa de se levantar tão cedo. Contudo, de dez em dez dias, é sempre ele quem se encarrega de ir buscar Marçal Gacho ao trabalho para passar com a família as quarenta horas de folga a que tem direito, e quem, depois, com louça ou sem louça na caixa da furgoneta, pontualmente o reconduz às suas responsabilidades e obrigações de guarda interno. A filha de Cipriano Algor, que se chama Marta, de apelidos Isasca, por parte da mãe já falecida, e Algor, por parte do pai, só goza da presença do marido em casa e na cama seis noites e três dias em cada mês na noite antes desta ficou grávida, mas ainda não o sabe.

A região é fosca, suja, não merece que a olhemos duas vezes. Alguém deu a estas enormes extensões de aparência nada campestre o nome técnico de Cintura Agrícola, e também, por analogia poética, o de Cintura Verde, mas a única paisagem que os olhos conseguem alcançar nos dois lados da estrada, cobrindo sem solução de continuidade perceptível muitos milhares de hectares, são grandes armações de tecto plano, rectangulares, feitas de plásticos de uma cor neutra que o tempo e as poeiras, aos poucos, foram desviando ao cinzento e ao pardo. Debaixo delas, fora dos olhares de quem passa, crescem plantas. Por caminhos secundários que vêm dar à estrada, saem, aqui e além, camiões e tractores com atrelados carregados de vegetais, mas o grosso do transporte já se efectuou durante a noite, estes de agora, ou têm autorização expressa e excepcional para fazer a entrega mais tarde, ou deixaram-se dormir. Marçal Gacho afastou discretamente a manga esquerda do casaco para olhar o relógio, está preocupado porque o trânsito se torna pouco a pouco mais denso e porque sabe que de aqui para diante, quando entrarem na Cintura Industrial, as dificuldades aumentarão. O sogro deu pelo gesto, mas deixou-se ficar calado, este seu genro é um moço simpático, sem dúvida, mas é nervoso, da raça dos desassossegados de nascença, sempre inquieto com a passagem do tempo, mesmo se o tem de sobra, caso em que nunca parece saber o que lhe há-de pôr dentro, dentro do tempo, entenda-se, Como será quando chegar à minha idade, pensou. Deixaram a Cintura Agrícola para trás, a estrada, agora mais suja, atravessa a Cintura Industrial rompendo pelo meio de instalações fabris de todos os tamanhos, actividades e feitios, com depósitos esféricos e cilíndricos de combustível, estações eléctricas, redes de canalizações, condutas de ar, pontes suspensas, tubos de todas as grossuras, uns vermelhos, outros pretos, chaminés lançando para a atmosfera rolos de fumos tóxicos, gruas de longos braços, laboratórios químicos, refinarias de petróleo, cheiros fétidos, amargos ou adocicados, ruídos estridentes de brocas, zumbidos de serras mecânicas, pancadas brutais de martelos de pilão, de vez em quando uma zona de silêncio, ninguém sabe o que se estará produzindo ali. Foi então que Cipriano Algor disse, Não te preocupes, chegaremos a tempo, Não estou preocupado, respondeu o genro, disfarçando mal a inquietação, Bem sei, era uma maneira de falar, disse Cipriano Algor. Fez virar a forgoneta para uma rua paralela reservada à circulação local, Vamos atalhar caminho por aqui, disse, se a polícia nos perguntar por que saímos da estrada, recorda-te da combinação, temos um assunto a tratar numa destas fábricas antes de chegarmos à cidade. Marçal Gacho respirou fundo, quando o tráfego se complicava na estrada, o sogro, mais tarde ou mais cedo, acabava por tomar um desvio». In José Saramago,  A Caverna, 2000, Editorial Caminho, 2014, Porto Editora

, ISBN 978-972-004-654-3.

Cortesia de ECaminho/PortoE/JDACT

JDACT, José Saramago, Literatura, Nobel, Cultura,