terça-feira, 16 de março de 2021

Objecto Quase. José Saramago. «E em pontos de prudência perca-se ao menos a suficiente para acompanhar, com a devida atenção, o movimento do ponteiro que passeia sobre este corte do cérebro»

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«(…) Quanto agora se passe, é pelo lado de dentro. Antes se diga, porém, que o corpo voltou a cair, e a cadeira acompanhante, de que não mais se falará ou apenas por alusão. É indiferente que a velocidade do som iguale subitamente a velocidade da luz, O que tinha de acontecer, aconteceu. Eva pode acorrer ansiosa, murmurando orações como nunca se esquece de fazer nas ocasiões adequadas, ou desta vez não, se é verdade os cataclismos privarem de voz, embora não de grito, as suas vítimas. Por isso Eva doméstica, buraco de martírio, se ajoelha e faz perguntas, agora faz, porque o cataclismo já lá vai, já passou, e restam os efeitos. Não tarda que de todos os lados venham subindo os Cains, se não é injusto afinal chamar-lhes assim. Dar-lhes o nome de um infeliz homem de quem o Senhor desviou a sua face, e por isso humanamente tirou vingança de um irmão lambe-botas e intriguista. Também lhes não chamaremos abutres, ainda que se movam assim, ou não, ou sim: mais exacto, do duplo ponto de vista morfológico e caracterológico, seria incluí-los no capítulo das hienas, e esta é uma grande descoberta. Com a ressalva importante de que as hienas, tal como os abutres, são úteis animais que limpam de carne morta as paisagens dos vivos e por isso lhes haveremos de agradecer, ao passo que estes são, ao mesmo tempo a hiena e a sua própria carne morta, e esta é que é afinal a grande descoberta que foi dita. O perpetuum mobile, ao contrário do que continuam a imaginar os inventores ingénuos de domingo, os iluminados taumaturgos do carpinteirismo, não é mecânico. É sim biológico, é esta hiena que se alimenta do seu corpo morto e putrefacto e assim constantemente se reconstitui em morte e putrefacção. Para interromper o ciclo, nem tudo basta, mas a mínima coisa abundaria. Algumas vezes, se Buck Jones não estava ausente do outro lado da montanha a perseguir uns simples e honestos ladrões de gado, uma cadeira serviria, e um sólido ponto de apoio no espaço para levantar o mundo, como disse Arquimedes a Híeron de Siracusa, e para romper os vasos sanguíneos que os ossos do crânio, julgavam proteger, e em sentido próprio se escreve julgavam porque mal parecia que ossos tão vizinhos do cérebro não fossem capazes de realizar, pelas vias de osmose ou simbiose, uma operação mental tão ao alcance como é o simples julgar. E ainda assim, se interrompido esse ciclo, haverá que estar atentos ao que no ponto de ruptura dele pode enxertar-se, e poderá ser, aí não por enxerto, uma outra hiena nascendo do flanco purulento, como Mercúrio da coxa de Júpiter, se comparações destas, mitológicas, são consentidas. Esta porém seria outra história, quem sabe se já contada.

Eva doméstica saiu daqui a correr, e também a gritar e a dizer palavras que não vale a pena registar, tão iguais são, que pouca diferença fazem, salvo no estilo medieval não tanto, àquelas que disse Leonor Teles quando lhe mataram o Andeiro, e mais era rainha. Este velho não está morto Desmaiou apenas, e nós podemos sentar-nos no chão, de pernas cruzadas, sem nenhuma pressa, porque um segundo é um século, e antes que aí cheguem os médicos e os maqueiros, e as hienas de calça de lista, chorando, uma eternidade se passará. Observemos bem. Pálido, mas não frio O coração bate, o pulso está firme, parece o velho que dorme, e querem ver que tudo isto foi afinal um grande equívoco, uma monstruosa maquinação para separar o bem do mal, o trigo do joio, os amigos dos inimigos, os que estão a favor apartados dos que estão contra, posto o que Buck Jones teria sido, em toda esta história de cadeira um reles e nojento provocador Calma, portugueses, escutai e tende paciência. Como sabeis, o crânio é uma caixa óssea que contém o cérebro, o qual vem a ser, por sua vez, conforme podemos apreciar neste mapa anatómico a cores naturais, nem mais nem menos que a parte superior da espinhal medula. Esta, que ao longo do dorso vinha de apertada, tendo encontrado espaço ali, desabrochou como uma flor de inteligência.

Repare-se que não é gratuita nem despicienda a comparação. É grande a variedade de flores, e para o caso bastará lembrarmos, ou lembre cada um de nós aquela de que mais goste, e no ponto extremo, verbi gratia, aquela com que mais antipatize, uma flor carnívora, de gustibus et coloribus non disputandum, suposto que concordemos na detestação do que a si mesmo se desnatura, ainda que, por exigência daquele rigor mínimo que sempre deve acompanhar a quem ensina e a quem aprende, nos devêssemos interrogar sobre a justiça da acusação, e embora, outra vez para que nada fique esquecido, devamos interrogar-nos sobre o direito que uma planta tenha de se alimentar duas vezes, primeiro da terra e logo do que no ar voa na múltipla forma dos insectos, senão das aves. Reparemos, de caminho, quanto é fácil paralisar-se o juízo, receber de um lado e do outro informações, tomá-las pelo que dizem ser e ficar neutral, porque nos declaramos espírito indiviso e sacrificamos todos os dias no altar da prudência, nossa melhor fornicação. Porém não fomos neutrais enquanto assistimos a esta longa queda. E em pontos de prudência perca-se ao menos a suficiente para acompanhar, com a devida atenção, o movimento do ponteiro que passeia sobre este corte do cérebro». In José Saramago, Objecto Quase, 1978, Porto Editora, 2015, ISBN 978-972-004-655-0.

Cortesia de PortoE/JDACT

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