domingo, 14 de março de 2021

Ken Follett. As Espias do Dia D. «A célula Bollinger havia conseguido arregimentar quinze pessoas para o ataque. Agora, com as armas escondidas sob a roupa ou no interior de bolsas e sacolas, elas se misturavam aos grupos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

28 de Maio de 1944

«(…) Sem reflectir muito, ela respondera que sim. Todos os rapazes com quem estudara em Oxford vinham arriscando a vida na guerra. Que motivos teria para não fazer o mesmo? Dois dias após o Natal de 1941, ela começara o seu treino na Executiva de Operações Especiais. Dentro de seis meses, dada a escassez de rádios e a enorme dificuldade de se encontrar operadores habilitados a usá-los, Flick já levava mensagens da matriz da Executiva em Londres, que ficava no número 64 da Baker Street, para os grupos de resistência na França ocupada. Ela saltava de paraquedas, transitava com documentos falsos, contatava a Resistência, repassava ordens, depois anotava respostas, reclamações e solicitações de armas e munição. Para a viagem de volta, era recolhida por um avião, geralmente um Westland Lysander de três lugares, pequeno o bastante para aterrar em qualquer ponto onde houvesse quinhentos metros de relva baixa.

Do trabalho como mensageira, ela passara à organização de manobras de sabotagem. Os agentes da Executiva de Operações Especiais eram quase todos oficiais do Exército e, teoricamente, a Resistência era o seu destacamento. Contudo, na prática a Resistência não se curvava à disciplina militar e, para conquistar o apoio dos seus integrantes, o oficial precisava ter conhecimento, voz activa e pulso firme. O trabalho era perigoso. Seis homens e duas mulheres haviam concluído o curso de treino junto com Flick. Dois anos depois, ela era a única ainda no activo. Não restava dúvida de que duas pessoas do grupo estavam mortas: uma sofrera um acidente de paraquedas e outra fora assassinada pela Milícia francesa, a odiosa força paramilitar que os alemães ajudaram a criar para combater a Resistência. As outras seis tinham sido capturadas, interrogadas e torturadas, depois levadas para os campos de prisioneiros na Alemanha, de onde nunca haviam saído. Flick sobrevivera porque era guerreira, pensava rápido e beirava a paranóia no cuidado que tinha com os procedimentos de segurança.

A seu lado estava Michel, seu marido, líder de uma célula da Resistência francesa que havia recebido o codinome de Bollinger e tinha como base de operações a cidade de Reims, famosa por sua catedral e situada a uns 15 quilómetros de Sainte-Cécile. Embora estivesse prestes a arriscar a vida, Michel se recostava despreocupado na cadeira, com o tornozelo direito apoiado no joelho esquerdo, empunhando um copo grande com a cerveja rala e sem cor dos tempos de guerra. Seu sorriso fácil conquistara o coração de Flick quando ela ainda estava na Sorbonne, escrevendo a sua tese sobre a ética de Molière, que seria obrigada a abandonar com a eclosão da guerra. À época ele era um jovem professor de filosofia que tinha aparência desleixada e um séquito de admiradores entre os alunos.

Michel ainda era o homem mais sexy que ela já conhecera. Alto, vestia-se de um modo ao mesmo tempo elegante e displicente, com os casacos sempre amarfanhados e as camisas azuis desbotadas. Os cabelos eram um pouco mais compridos do que deveriam ser. A voz sensual era um convite para a cama e os olhos azuis, quando focavam uma mulher, faziam com que ela se sentisse a única no mundo inteiro. Para Flick, aquela missão fora uma óptima oportunidade para passar alguns dias na companhia do marido, mas nem tudo tinham sido flores. Não que eles houvessem brigado, mas Michel dava a impressão de que já não sentia o mesmo afecto de antes, de que apenas seguia os protocolos do casamento, e isso a magoava. A intuição lhe dizia que ele andava interessado em outra mulher. Michel tinha apenas 35 anos, e o seu charme desleixado exercia algum fascínio sobre as mais jovens. Não ajudava em nada o facto de que, por causa da guerra, eles haviam passado mais tempo afastados do que juntos desde que se casaram. Não faltavam francesinhas, tanto na Resistência quanto fora dela, que se dispunham a consolá-lo.

Flick ainda amava Michel. Mas de outro jeito. Não tinha por ele aquela mesma adoração cega da lua de mel, tampouco pretendia passar uma vida inteira dedicando-se exclusivamente à felicidade dele. A neblina matinal do amor romântico já se dissipara e agora, sob a luz implacável da vida matrimonial, ela podia ver que Michel era um homem vaidoso, egocêntrico e pouco confiável. No entanto, quando se dispunha a colocá-la no centro das suas atenções, ainda era capaz de fazê-la sentir-se uma mulher bonita, desejada e especial. Os encantos de Michel também funcionavam sobre os homens, e ele era um excelente líder, corajoso e carismático. Ele e Flick haviam traçado juntos o plano de acção daquela noite: atacariam o castelo em duas frentes distintas, dividindo as defesas, depois se reencontrariam no interior da construção e desceriam ao porão para explodir os equipamentos principais da central telefónica.

Eles dispunham da planta baixa do prédio, presente de Antoinette Dupert, supervisora do grupo de mulheres locais que limpava o castelo todas as noites. Por coincidência, Antoinette era também tia de Michel. A limpeza começava às sete, mesma hora da missa, e Flick já avistava algumas mulheres apresentando seus passes especiais ao guarda junto ao portão de ferro. A planta fornecida por Antoinette indicava apenas a entrada do porão, pois o lugar era de acesso exclusivo a alemães e a limpeza era feita por soldados. O plano de ataque de Michel tinha por base os relatos do MI6, o serviço secreto britânico, segundo os quais o castelo era protegido por um destacamento da Waffen SS, a tropa de elite nazista, que operava em três turnos de doze homens cada. Os funcionários da Gestapo que trabalhavam ali não eram treinados para combate; a maioria sequer estaria armada. A célula Bollinger havia conseguido arregimentar quinze pessoas para o ataque. Agora, com as armas escondidas sob a roupa ou no interior de bolsas e sacolas, elas se misturavam aos grupos que aguardavam a missa na igreja e aos que passeavam tranquilamente na praça. Se as informações do MI6 estivessem correctas, haveria mais representantes da Resistência do que sentinelas alemãs na hora do ataque». In Ken Follett, As Espias do Dia D, 2001, Editora Arqueiro, 2015, ISBN 978- 858-041-410-3.

Cortesia de EArqueiro/JDACT

JDACT, Ken Follett, Literatura, II Guerra Mundial,