terça-feira, 23 de março de 2021

Ivanhoe. Walter Scott. «A situação da classe mediana, os rendeiros-livres, como lhes chamavam, a quem a lei e o espírito da Constituição inglesa concediam independência da tirania feudal…»

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«Naquele aprazível rincão da alegre Inglaterra, banhado pelo rio Dom, existiu, em tempos que já lá vão, uma grande floresta recobrindo os belos montes e vales estendendo-se entre Sheffield e a deliciosa cidade de Doncaster. Os restos dessa imensa mata ainda se percebem junto dos nobres assentos de Wentworth, de Wharnclifie Park e ao redor de Rotherham. Ali vagueou, no passado, o Dragão de Wantley, lá se travaram muitas das mais desesperadas batalhas da Guerra Civil das Rosas e ainda naqueles lados viveram outrora, aqueles bandos de galantes proscritos cujos feitos os cantares ingleses tão populares tornariam. Será este o nosso principal cenário, decorrendo a nossa história no período final do reinado de Ricardo I (1157-1199), quando no seu retorno de demorado cativeiro, concretizou algo que os seus súbditos, desesperados, mais desejavam do que esperançavam, enquanto iam sendo submetidos a todos os géneros de opressão. Os nobres, cujo poder se exorbitara, durante o reinado de Estêvão (1135-1154), e de quem a prudência de Henrique II (1154-1189) quase não conseguira obter um mínimo de sujeição à coroa, usufruíam, no momento, da sua anterior licença sob a mais vasta forma, desprezando a débil interferência do Conselho de Estado inglês, fortificando os seus castelos, aumentando o número dos seus dependentes, obrigando a vassalagem todos à sua volta e tudo fazendo para conseguirem juntar forças bastantes para lhes concederem um lugar cimeiro nas convulsões nacionais que pareciam aproximar-se.

A situação da classe mediana, os rendeiros-livres, como lhes chamavam, a quem a lei e o espírito da Constituição inglesa concediam independência da tirania feudal, era agora verdadeiramente precária. Se, como era frequente, se colocavam sob a protecção de algum reizinho das vizinhanças, ocupando posições dentro da engrenagem feudal do paço, a ele se prendendo por laços de tratados de aliança e protecção mútuas, ou apoiando-os nos seus empreendimentos, conseguiam, por vezes, um repouso temporário, obtido claro é, com o sacrifício da independência pessoal, sempre tão arraigada no íntimo de todos os ingleses, e sujeitando-se ao perigo de se verem envolvidos, como elementos de qualquer irreflectida expedição para a qual a ambição dos seus protectores os arrastasse. Por outro lado, era tanta e tão variada a capacidade de humilhação e opressão de que os grandes fidalgos gozavam, que nunca conseguiam pretextos e raramente a força de vontade para importunar mesmo quando à beira da própria destruição, os seus menos poderosos vizinhos que tentassem fugir à sua autoridade procurando protecção contra os perigos do tempo numa conduta inofensiva nas leis da terra.

Uma das causas que grandemente concorriam para o aumento da tirania da nobreza e sofrimento das classes inferiores advinha das consequências da conquista, pelo duque Guilherme, da Normandia. Quatro gerações não tinham sido bastantes para ligar os sangues incompatíveis de Normandos e Anglo-Saxões, ou, mesmo: para unir, por uma língua única e interesses comuns, duas raças hostis, uma das quais ainda vibrava com a altivez da vitória, enquanto a outra prosseguia gemendo sob o peso da derrota. Como resultado da batalha de Hastings (1066) o poder passara totalmente para as mãos da nobreza normanda, mãos que, como nos contam os livros de história, não o empregavam com muita moderação. Toda uma geração de príncipes e nobres saxões fora extirpada. ou deserdada, com poucas ou nenhumas excepções, da mesma forma que poucos eram os das classes logo abaixo deles e das mais inferiores ainda que possuíssem, como proprietários, terras no país dos seus pais. A política real fora, desde sempre, a de enfraquecer por quaisquer meios uma parte da população que era vista, e com realismo, como sentindo a maior das antipatias para com o seu vencedor. Todos os monarcas de raça normanda continuadamente evidenciaram a mais marcada das preferências pelos seus súbditos normandos. As leis da caça, um exemplo entre muitos, e outras, igualmente desconhecidas pela menos rigorosa e de espírito mais aberto Constituição saxónica, haviam sido carregadas ao serviço do povo já subjugado, acrescentando-lhes mais peso ainda às correntes feudais que já arrastavam. Na corte e nos castelos dos grandes nobres, que imitavam a pompa e a forma de agir dos cortesãos, o francês da Normandia era a única língua a ser utilizada. Nos tribunais, nos debates e nos julgamentos empregava-se também o mesmo idioma. Resumindo, o francês era a fala da honraria, da cavalaria e até da justiça, enquanto o mais masculino e expressivo anglo-saxão fora deixado para uso de rústicos e bisonhos labregos que mais não sabiam. No entanto, a necessidade de inevitáveis contatos entre os senhores da terra e os oprimidos seres inferiores que as cultivavam já começavam a levar à gradual criação de um dialecto feito duma mistura de francês e anglo-saxão, através do qual se iam entendendo uns com os outros. Seria a partir desta mesma necessidade que, lentamente, se formaria a estrutura da nossa língua actual, o inglês, onde os falares dos vencedores e vencidos, em harmoniosa fusão, se entrelaçaram, enriquecendo-se depois com aquisições aos idiomas clássicos e às línguas europeias do Sul». In Walter Scott, Ivanhoe, 1819-1820, Publicações Europa-América, colecção Livros de Bolso, 1985, ISBN 978-972-101-237-0.

Cortesia de PEAmérica/JDACT

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