quinta-feira, 13 de maio de 2010

A Guitarra Portuguesa: A guitarra é o principal, e quase único, instrumento popular de expressão lírica, com quase total exclusão de figurações cerimoniais

A Guitarra Portuguesa
Cortesia de attambur
Com a devida vénia a Ernesto Veiga de Oliveira, publico parte do seu texto referente à Guitarra Portuguesa, publicado em Attambur.
A «guitarra portuguesa» é um cordofone com a caixa harmónica piriforme, o bojo ou cabaço, sem enfranque, a aguçar para o braço, e de fundo chato e tampos aproximadamente paralelos. A sua boca é redonda; arma com seis ordens de cordas todas metálicas, as três primeiras com cordas lisas, as três últimas com corda lisa e bordão em oitava.
As primitivas guitarras tinham as primeiras quatro ordens duplas, e as duas últimas singelas - dez cordas portanto ; actualmente, todas as ordens são duplas (e há mesmo casos em que as três últimas ordens são triplas).
Silva Leite, em 1796, dá-lhes, do agudo para o grave, os nomes de primas, segundas, terceiras, quartas, quinta e sexta, e indica as seguintes qualidades: primas(duas), carrinho n.° 8 (arame branco); segundas (duas), carrinho n.° 6 (arame branco); terceiras (duas) carrinho n.° 4 ; quartas (duas), bordões cobertos ou bordões G--sol-ré-ut (amarelas); quinta, bordão de E-lá-mi; e sexta, outro bordar de G-sol-ré--ut. César das Neves, por seu turno, dá àquelas cordas os nomes de primas, segundas, toeiras, e bordão de primas, bordão de segundas e bordão de toeiras, indica as seguintes qualidades : verdegais de aço n.° 8 ou 9 para as primas, 6 ou 7 para as segundas, 4 ou 5, ou amarelas, para as toeiras, e bordões n.º l, 2 e 3 para os três bordões respectivamente. Os guitarristas mais recentes chamam terceiras ás toeiras, e indicam cordas de aço nº l0, 8 e 4 para as cordas lisas, respectivamente. A afinação desta guitarra era:
  • -mi3 -dó3 -sol2 -mi2 -dó2

A escala é em ressalto sobre o tampo, vindo até à boca. Esses primitivos modelos eram de dimensões consideravelmente mais pequenas do que os actuais, especialmente no braço, e sobretudo na caixa, que era por vezes mesmo extremamente diminuta e baixa. O número de trastes era então menor do que hoje: em 1796, Silva Leite indica doze (ou seja uma amplitude de duas oitavas e meia - como no cistro - própria para acompanhamentos); nos começos do século XIX, viam-se catorze ou quinze; em 1875, aparecem guitarras apenas com dez, para acompanhar a voz no fado; hoje obrigatoriamente, eles são sempre em número de dezassete (correspondendo a três oitavas e meia).
A Guitarra Portuguesa
Cortesia de attambur
Segundo Armando Simões, em Coimbra, no século XIX, não se construíam guitarras. A verdadeira indústria da construção desses instrumentos, naquela cidade, remonta ao fim do século XIX e primeiro quartel do século XX. As primeiras guitarras ali utilizadas vieram de Lisboa, trazidas pelos estudantes.
Actualmente, os violeiros fabricam guitarras de três tipos:
  • De Lisboa, que é o mais pequeno, com caixa menos alta e sobre o redondo, de timbre mais «aguitarrado», ajustado aos «tremidinhos» ou trinados do fado corrido;
  • De Coimbra, que é o maior, com a caixa mais aguçada e a escala mais comprida, ajustada ao tipo de balada dessa forma, em que a guitarra acompanha o canto com acordes;
  • Do Porto (e Braga), semelhante ao de Coimbra, mas um pouco mais pequeno.
A guitarra de Lisboa, própria para profissionais, é de factura cuidada, e tem um som mais brilhante; a de Coimbra, própria para amadores, e para ser tocada ao ar livre, é em regra mais barata. Num modelo antigo comum, a guitarra pode medir cerca de 73 cm de comprimento total, sendo 19 para a cabeça, 20 para o braço e mais 7 para a escala, e 34 para a caixa; a largura máxima desta é de 27 cm, e a altura 8. Num modelo recente comum, por sua vez, ela pode medir cerca de 81 cm de comprimento total, sendo 20 para a cabeça, 18 para o braço e mais 14 para a escala e 43 para a caixa, com 38 de largura máxima, e 8 a 9 de altura.

A cabeça da guitarra de Lisboa
A escala, junto á boca, pode ser cortada por esta ou terminar em curva que lhe fica tangente, ora ainda formar recorte assimétrico do lado das cordas mais agudas, que vem um pouco abaixo, já sobre a boca.

Ainda segundo Armando Simões, as guitarras do tipo de Coimbra afinavam dois pontos mais baixo que o lamiré, embora a sua escala fosse mais comprida e com o mesmo número de pontos que as dos tipos de Lisboa e do Porto; nelas, as ilhargas eram muito baixas, ficando o tampo e o fundo muito próximos, com prejuízo do brilho do som, que em contrapartida era mais grave e mimoso; e esta característica ter-se-ia fixado nos fins do século XIX, a partir da guitarra do Hilário, construída em Lisboa por Augusto Vieira.
A cabeça da guitarra de Coimbra
A cabeça é em Voluta ou gancha. Na guitarra de Silva Leite, ela terminava num pequeno escudo quadrado, que algumas vezes mostrava embutidos em madrepérola. Mais tarde, esse motivo tomou um formato oval, e ultimamente de coração, com monograma (quando o instrumento é de estudantes). Este pormenor ainda hoje se vê nas guitarras construídas ou usadas em Coimbra.
Nas guitarras de Lisboa, a gancha ou Voluta é geralmente em caracol.
Nas do Porto, ela é constituída por uma flor e, nas guitarras antigas via-se também, por vezes, volutas em cabeças de animal ou com outros motivos - parecendo, em todos os casos, representar o antigo cravelhal do cistro.
A guitarra do Porto
Na face anterior da cabeça, num cavado triangular, fixa-se a chapa que faz de cravelhal onde prenderão as cordas, em cima. As chapas, nos exemplares mais antigos, eram do sistema de tarracha e chave, e, de entrada, vinham de Inglaterra: seguidamente o violeiro Sevilhano, do Porto, começou a fazê-las cá, e João José de Sousa, de Lisboa, e Domingos José de Araújo, de Coimbra, e depois outros, seguiram-lhe o exemplo.
Hoje, as chapas são sempre do sistema de leque metálico, que veio substituir a tarracha e chave. Noutras formas, também antigas, e em geral mais pobres, aparecem guitarras com cabeça lisa, de madeira, e cravelhas dorsais, como as violas. Em baixo, as cordas fixam-se na ilharga, ao fundo, pelo sistema de atadilho, com botões.

Segundo Armando Simões, o fundo da caixa é em regra plano, mas nos exemplares de construção mais esmerada ele pode ser ligeiramente abaulado. Para o tampo usam-se madeiras pouco densas e portanto mais flexíveis, para que vibre melhor com o som, como sejam a casquinha, o pinho de Flandres ou de Veneza, ou ainda o «Spruce» alemão.
A meio abre-se o orifício da boca, que, no século XVIII e começos do XIX ostentava uma bela rosácea lavrada decorativa, também como nos cistros. Nalgumas guitarras boas (mas raras) vê-se uma boca de cada lado, equivalendo aos «ouvidos» dos cordofones de arco. Para o restante da caixa, fundo e ilhargas, escolhem-se madeiras densas, que reflectem melhor, contra o tampo, o som produzido pela vibração das cordas, como o ébano, o pau-santo, o arce, o mogno, o cedro, a nogueira (e também, nas guitarras de Coimbra, o plátano ou o choupo, que, embora pouco densas, abundam na região), conforme o gosto de cada um e, de certo modo, a sonoridade que se pretende obter.
Nos níveis aristocráticos, e na fase mítica do fado, a que adiante aludiremos, aparecem mesmo sumptuosas guitarras de luxo, com o tampo em madeiras preciosas e completamente recamado de embutidos. Silva Leite, para que uma guitarra seja boa, indica três princípios a observar:
  • Boa madeira, plátano, e o tampo, de Veneza, de veio fino e rija. O bojo, ou cabaço, redondo para a parte do cavalete, estreito para o «ponto» ; o comprimento desde a 12ª divisão para o cavalete deve ser igual ao da «pestana» para a 12ª divisão;
  •  Proporção nas suas partes, sobretudo nas doze divisões do «ponto»;
  • Cavalete no seu lugar certo.

A guitarra toca-se numa combinação de pontiado e de rasgado. A mão direita é que bate as cordas, sossegadamente e «sem dar saltos», na altura da boca. O mínimo (e ás vezes também o anelar) apoia no tampo, junto ás primeiras cordas. O médio e o indicador (e outras vezes também o anelar) correm, direitos e flexíveis, as cordas.
Com a esquerda (cuja posição varia conforme os tocadores) premem-se as cordas, na escala, mas apenas o polegar e o indicador dedilham «com a ponta da unha» (Silva Leite), e nesses dedos usa-se ora as unhas crescidas ora um curto plectro. O polegar trabalha no bordão de terceiras, ás vezes no de segundas, mas nunca nas três primeiras cordas (hoje em dia isto já não é verdade...). O indicador trabalha nestas, mas pode, sendo conveniente, ir aos bordões, O tocador está geralmente sentado, o corpo direito e á vontade, o instrumento sobre a coxa direita e encostado contra o peito, à esquerda, o leque inclinado para o ombro esquerdo, o braço apoiado, junto à pestana, entre o polegar e o indicador desse lado, sem encostar a palma da mão e sem apertar contra o peito.

Segundo uma corrente que goza em Portugal de grande popularidade, a «guitarra portuguesa» actual seria de origem árabe. Tal orientação funda-se em geral, sem critica, na razão meramente verbal de uma suposta equiparação do nosso instrumento actual á velha «guitarra mourisca» ou «sarracenica», e no facto da sua associação ao fado, a que essas mesmas orientações atribuem também, por via de regra, origens árabes. Vimos já que a «guitarra mourisca» está na origem de uma linhagem instrumental completamente diferente, as mandolas e mandolinas, e que a associação da actual guitarra ao fado é um fenómeno muito recente.
De facto, parece indubitável que esta «guitarra portuguesa» actual não é senão uma forma nacional, tardia, do cistro europeu seis ou setecentista (que, salvo no que respeita ao cravelhal, tem de facto exactamente a mesma forma que ela, e até em alguns casos o mesmo número de cordas e afinações ,muito apreciado, como dissemos, em Inglaterra nessas eras, onde levava o nome deveras significativo para o nosso caso, de «english guitar», ele próprio talvez herdeiro das cedras ou citolas medievais.

Estes antepassados do cistro, mesmo depois da época trovadoresca, continuaram possivelmen-te a cultivar-se entre nós. De facto, são talvez cedras ou citolas os instrumentos que vemos representados num capitel do pórtico manuelino da igreja do castelo de Viana do Alentejo, na arquivolta do pórtico da Batalha, no frontão alto da Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, etc.
Philipe de Caverel refere-o, sob o nome expresso de cistro, em Lisboa (1582). Parece também ser um cistro o instrumento que figura nas mãos de um dos anjos na tela seis ou setecentista da Adoração dos Pastores da Igreja de Santa Maria da Alcáçova em Elvas. Apesar disso, porém, não se pode afirmar que a «guitarra portuguesa» de hoje represente o prolongamento directo e especifico da tradição desses velhos instrumentos (e muito menos ainda, como ficou dito, das demais «guitarras» medievais, que nenhuma relação têm com ela). As referências a eles são escassas, e é de crer que, entre o povo, o seu rasto se perdera. O próprio Caverel nota que o instrumento é pouco comum e usado apenas pela gente «mais polida», parecendo pois tratar-se de uma espécie culta ou citadina, cultivada esporadicamente e já talvez por influência geral da moda europeia, mais do que pela força de uma antiga corrente que tivesse perdurado. Na verdade - e sem recusarmos inteiramente possíveis raízes anteriores mais ou menos ténues, o formato da nossa guitarra actual, e sobretudo o complexo cultural, tão fortemente marcado, em que ela hoje se integra indissoluvelmente, nada parece terem que ver com quaisquer instrumentos nacionais anteriores. A «guitarra portuguesa» representa, segundo toda a probabilidade, a difusão restrita, aqui processada não antes do século XVIII, desse cistro ou «guitarra inglesa» do século XVII, adaptada seguidamente a um género vocal próprio, também recente e alheio mesmo á gente do campo, a que as características do instrumento se ajustavam muito convenientemente.

Mário de Sampayo Ribeiro, na falta de noticias expressas e de outros dados, fixa a data provável do aparecimento desse cistro em Portugal entre 1789, ano em que é publicada a Nova Arte da Viola, de Manuel da Paixão Ribeiro, que ignora ainda completamente a guitarra e 1796, em que ela é pela primeira vez mencionada, no Estudo da Guitarra, publicado no Porto por António da Silva Leite, para uso dos seus inúmeros discípulos e do sucesso que o instrumento tinha entre nós.
Por essa obra vê-se que as guitarras vinham da Inglaterra, onde eram construídas por um senhor Simpson. A guitarra, que Silva Leite julga também ser de origem inglesa, teria, segundo Mário de Sampayo Ribeiro, sido introduzida pela colónia inglesa no Porto, muito importante desde os princípios do século XVIII. Deste modo, seria nos fins desse século e a partir daquela cidade, que a guitarra se difunde por todo o Pais.
Cortesia de pokerstrategy
A «guitarra portuguesa» está actualmente ligada ao fado (com acompanhamento de violão), tanto na sua forma de Lisboa como na de Coimbra , mas essa ligação parece na verdade ser um facto recente.
Seja qual for a sua cronologia, a popularização da guitarra coincide certamente, em Lisboa, com a sua adaptação ao fado, que se define como um sincretismo de correntes várias, também em época não recuada, mas que já era conhecido e cantado antes disso. Nos primeiros tempos, os próprios «fadistas» não tinham consciência da necessidade dessa ligação, e parece que, quando se divulgou o bandolim, a trocaram por ele. Mas com o aparecimento, em meados do século XIX, das grandes figuras do fado, a Severa, o Conde de Vimioso, o Hilário, etc., que coincidem com essa fase da sua associação á guitarra, cria-se o mito da guitarra e do fado, que ascendem aos níveis aristocráticos e literários, tomam corpo as suas feições ulteriores. Define-se o tipo romanesco do fadista, plebeu ou fidalgo, e elabora-se mesmo um conceito temperamental nacional a partir dessas formas, ao mesmo tempo que se enriquecem extraordinariamente todos os aspectos musicais do fado». In Ernesto Veiga de Oliveira, em Attambur.

A guitarra é pois, entre nós, o principal - e quase único - instrumento popular de expressão qualificadamente lírica, com total exclusão de figurações cerimoniais.


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Attambur/JDACT

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