sábado, 18 de agosto de 2012

Cartas Portuguesas. Soror Mariana Alcoforado. «Deixei-me seduzir por qualidades bem medíocres! Que fez, afinal, que me pudesse agradar? Que é que me sacrificou? Não procurou antes mil outros prazeres? Acaso renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para a guerra?»


Ilustração de José Ruy
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Pela boca de soror Mariana falam todas as puras amantes de Portugal

«Até neste momento procuro desculpá-lo, e compreendo bem que uma religiosa não pode, em geral, despertar grande paixão. No entanto, parece-me que, se nas escolhas que se fazem fosse possível entrar com a razão, haveria motivos de as preferir às outras mulheres: nada as impede de pensar incessantemente na sua paixão, nem são desviadas pelas mil coisas que no mundo dissipam e ocupam. Parece-me que não será muito agradável ver aquelas que se ama sempre distraídas por mil bagatelas, e é preciso ter muito pouca delicadeza para suportar sem desespero que não falem senão de reuniões, de encontros e de passeios.
Está-se sempre exposto a novos ciúmes. Elas são obrigadas a atender, a comprazer, a conversar: quem pode garantir que não têm um certo prazer em todas estas ocasiões e que não suportam sempre os seus maridos com um extremo desgosto e de má mente? Ah! Como elas devem desconfiar dum amante que não lhes faz notar tudo isso, que acredita facilmente e sem inquietação no que elas lhe dizem e que as vê, com toda a confiança e tranquilidade, sujeitas a todos estes deveres!
M as não pretendo provar-lhe com boas razões que deveria amar-me. Não são meios que valham: outros bem melhores empreguei e nada consegui. Conheço bem de mais o meu destino para procurar opor-me a ele. Serei uma desgraçada toda a vida: não o era já quando o via todos os dias? Eu morria com o receio de que não me fosse fiel; desejava vê-lo a cada momento, e isso não era possível; atormentava-me o perigo que corria entrando neste convento; não era vida o que eu vivia quando estava na guerra, e desesperava por não ser mais bela e mais digna de si; maldizia a mediocridade da minha condição e pensava muitas vezes quo o afecto que parecia ter por mim lhe poderia trazer dissabores; tinha a impressão de que não o amava o bastante; temia a cólera dos meus parentes contra si. Enfim! Encontrava-me num estado tão deplorável como aquele em que me encontro presentemente.
Se me tivesse dado algumas provas da sua paixão depois que partiu de Portugal, teria feito todos os esforços para sair daqui; ter-me-ia disfarçado para ir ter consigo. Ai de mim! O que teria sido de mim se, depois de estar em França, não se importasse comigo? Que desatino! Que loucura! Que cúmulo de vergonha para a minha família, que me é tão querida desde que deixei de o amar!
Já vê como conheço, a sangue-frio, que era possível ser ainda mais de lamentar do que na realidade sou: ao menos uma vez na vida, estou-lhe a falar sensatamente! Como a minha moderação lhe vai agradar! E como ficará contente comigo! Mas não o quero saber. Já lhe pedi que nunca mais volte a escrever-me e a isso o conjuro mais uma vez.
Nunca reflectiu um pouco sobre o modo como me tratou? Nunca pensou que tem para comigo mais obrigações do que para com qualquer outra pessoa no mundo? Amei-o como louca! O desprezo que eu tive por todas as coisas!

O seu procedimento não é de um homem honesto. É preciso que experimentasse por mim uma autêntica aversão natural para não me ter amado perdidamente.
Deixei-me seduzir por qualidades bem medíocres! Que fez, afinal, que me pudesse agradar? Que é que me sacrificou? Não procurou antes mil outros prazeres? Acaso renunciou ao jogo e à caça? Não foi o primeiro a partir para a guerra? Não foi o último a voltar de lá? Nela se expôs loucamente, apesar de lhe ter pedido que se poupasse por amor de mim». In Soror Mariana Alcoforado, Cartas Portuguesas, texto da primeira edição francesa de 1669, Europa América, 1974.

continua
Cortesia de P. Europa-América/José Ruy/ JDACT