domingo, 26 de agosto de 2012

José Mattoso. Naquele Tempo: Ensaios de História Medieval. «… que as normas, valores e práticas podem variar ao longo dos séculos, mas a natureza humana permanece razoavelmente igual a si mesma, desde há vários milhares de anos. É a natureza que mais comanda os afectos»


jdact

Sobre a história da sexualidade e da afectividade
«É de natureza diferente o segundo exemplo que queria apresentar em seguida, para mostrar a dificuldade encontrada pelos historiadores no tratamento desta matéria. Estou a pensar num cerro número de investigações históricas acerca da prática da homossexualidade masculina e feminina. Os testemunhos que os seus autores apresentam como evidentes nem sempre me parecem tão seguros como isso. Como se sabe, as expressões que designam o comportamento sexual são quase sempre eufemísticas ou metafóricas, sobretudo quando se referem a práticas mais ou menos contestadas. O seu entendimento depende muito da imaginação do leitor. Ora, em muitos textos, sobretudo literários, é impossível distinguir as fronteiras entre a ficção e a realidade, ou entre a suspeita e a certeza; nunca é de excluir que o autor se queira divertir a excitar gratuitamente a imaginação do leitor ou pretenda lançar a suspeita sem se atrever a afirmar coisa alguma. Ao atribuir significados precisos a tais textos, certos investigadores parecem comprazer-se neles; não se exclui, da sua parte, um secreto desejo de legitimar as suas próprias tendências sexuais ou de relativizar a norma condenatória do que outrora, segundo eles, era permitido. O resultado de alguns destes estudos, não de todos, convém não generalizar esta observação é, portanto, duvidoso.
Em suma, conhecidas as investigações históricas nesta matéria, permanecemos muitas vezes desorientados e quase tão ignorantes como antes. Suspeitamos de que o comportamento sexual foi noutras épocas diferente do nosso, pelo menos em alguns pontos, mas pouco mais ficamos a saber do que isso.

Quer isto dizer que nada se pode saber a este respeito? Também não é, tanto assim.
Na minha opinião, temos, antes de mais, de distinguir os valores e as normas, o permitido, o proibido e o prescrito, a doutrina e a prática. Temos também de distinguir os grupos sociais, porque a moral sexual não é a mesma para todos. Temos, finalmente, de tentar descobrir não só a norma expressa, mas também a subentendida, isto é, aquela que é considerada socialmente correcta, embora não coincida estritamente com a norma proclamada pelas autoridades oficiais, religiosas ou civis. Em termos gerais, podemos conhecer com clareza suficiente os valores aceites por todos, algumas normas positivas e negativas, quer as que se destinam a toda a gente, quer as que se aplicam a grupos minoritários, sobretudo das classes superiores, mas devemos renunciar, provavelmente para sempre, a saber o que se passava efectivamente na intimidade do casal, pelo menos até ao século XIX, quer para o conjunto da população, quer para a maioria dos grupos sociais. Não tenhamos ilusões, é inútil pretender obter no passado resultados comparáveis aos do ‘relatório Kinsey’.
Finalmente, sou de opinião, confirmada pelos estudos que li a este respeito, que as normas, valores e práticas podem variar ao longo dos séculos, mas a natureza humana permanece razoavelmente igual a si mesma, pelo menos desde que existem textos escritos, ou seja, desde há vários milhares de anos. Isto é importante, porque é a natureza que mais directamente comanda os afectos.

Vejamos algumas destas coisas mais de perto.
Comecemos justamente pelo afecto conjugal. Como o afecto é por sua natureza espontâneo e livre, é ilusória qualquer tentativa para o submeter a normas, mas constitui objecto de valores e, aqui no caso, até, de valores altamente apreciados. Neste domínio, creio poder-se encontrar uma grande permanência: o afecto conjugal é um valor desde que existem testemunhos directos ou indirectos a seu respeito, isto é, desde os documentos babilónicos de 3000 anos antes de Cristo, até aos nossos dias. Creio ter sido assim, mesmo em épocas e sociedades cujas práticas e estruturas sociais não o favoreciam, como, por exemplo, entre as classes superiores do fim do Império Romano ou entre os cavaleiros da alta Idade Média. Os epitáfios dos túmulos, as estátuas dos casais romanos e etruscos cujos gestos e expressões não enganam, as prescrições dos moralistas, as tragédias gregas ou os textos dos oradores não permitem outra conclusão:
  • os Gregos e os Romanos apreciam o afecto conjugal, consideram-no um valor importante, cultivam-no; os estóicos declaram, mesmo, que a amizade entre marido e mulher é um dever, transformam o valor em norma prescritiva, antecipando-se assim aos cristãos.
Diga-se de passagem que não sei se esta contaminação dos valores pelas normas trouxe vantagens, isto é, se favoreceu efectivamente a prática, mas isso já é outra questão. Mesmo no auge da violência feudal, mesmo sabendo nós que na Idade Média o casamento era quase sempre decidido pelos pais e parentes sem nenhuma intervenção dos noivos, penso que o afecto conjugal continua e ser um valor de grande importância: recorro aqui de novo ao testemunho eloquente das ‘Cantigas de Santa Maria’, às fórmulas usadas pelas doações do marido à mulher a seguir ao casamento, as arras, aos romances de cavalaria, a muitas narrativas hagiográficas e, naturalmente, aos sermões e homilias dos bispos e clérigos».  
In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT