domingo, 5 de agosto de 2012

Vésperas de Sombra. Nuno Júdice. «Mas a sugestão sensual da fotografia talvez pudesse reacender a especulação acerca do túnel, e de uma câmara secreta que teria sido usada como cave para vinhos, e depois pintada com cores vivas e mobilada com um divã no qual os dois realizavam o seu desejo»


jdact

«Ou antes, alguém, ao remexer aquele entulho, onde estavam roupas, livros sem interesse, velhas caixas de bombons, frascos de remédio vazios, cartas rasgadas, panos de costura, terá pegado na fotografia, e terá perguntado quem era aquela mulher, a não ser que apenas se tivesse rido daquela imagem anacrónica, e tivesse querido pregar alguma partida, prendendo a fotografia num muro e deixando-a ali, expondo a mulher como se ela fosse um anúncio publicitário, embora o tom baço do papel desse mais a entender um anúncio funerário do que propriamente um apelo sensual. A fotografia ainda ali ficou algumas horas, sem que ninguém tivesse reconhecido a suicida, a não ser alguma vizinha de idade, mas a essas já ninguém ligava.
Porém, aquela cara, e sobretudo a fixidez do seu olhar, começou a provocar alguma inquietação; as crianças atiraram-lhe pedras, começando a rasgar o papel; e quando o carro do lixo passou, deitaram-na para cima dos sacos, onde apanhou em cheio com o sol que começava a bater com força, e viram-na desaparecer desta vez para sempre, mas o que ficou na memória não foi tanto o rosto de alguém cuja identidade continuou ignorada, mas sim o facto de que o sol provocou uma alteração no rosto, abrindo o que pareceu ter sido um sorriso, e não foi tanto um sorriso de felicidade como um esgar de ironia, por trás do qual surgiu, de súbito, todo um passado de tragédia e de solidão.
É claro que já ninguém saberia dizer se essa tragédia teria sido um resultado da sua ligação com o Senhor; nem havia quem ousasse desenterrar histórias velhas, perguntando às pessoas daquele tempo o que é que, de facto, era verdade, se é que a verdade a respeito do mundo interior e secreto de cada um, alguma vez, se pode saber. Mas a sugestão sensual da fotografia talvez pudesse reacender a especulação acerca do túnel, e de uma câmara secreta que teria sido usada como cave para vinhos, e depois pintada com cores vivas e mobilada com um divã no qual os dois realizavam o seu desejo. É de referir, no entanto, que não se acrescentava muito mais para além disso, já que a imaginação erótica era relativamente rudimentar naquelas sociedades, limitando-se a conceber o acto na sua posição mais tradicional, e ainda por cima praticado apenas para esgotar o anseio do macho, ficando a mulher quase sempre insatisfeita, e ele retirando-se logo para casa, porque não lhe convinha estar muito tempo sem ser visto.
Teria sido essa insatisfação que explicou o seu suicídio, fazendo dela uma mulher duas vezes insatisfeita, pela terra que a desprezava e pelo amante que a deixava a meio caminho do êxtase? É o tipo de interrogações que dificilmente terão uma resposta; o que se pode dizer é que, se é verdade que e relação sexual esporádica, numa altura de festa, ou durante o carnaval que favorece amores de ocasião, não deixa grandes consequências, embora possa deixar grandes recordações, já o amor prolongado cria expectativas que, tornando-se impossíveis porque jâ à partida o eram, a não ser quando os amantes coabitam na mesma casa, como patrão e empregada, e podem manter a aparência da distância social, embora vivam como marido e mulher, até atingirem uma idade em que os compromissos sociais já importam pouco e, então, sobretudo se existem filhos ilegítimos, acabam por oficializar a relação, vêm então, essas expectativas, a determinar decepções que, pouco a pouco, mergulham a pessoa na melancolia que tem, no fim, a corda pendurada numa trave, ou num ramo de árvore, que é o fim habitual e, no fundo, menos doloroso do que o veneno de escaravelho, para quem opte pela solução da morte». In Nuno Júdice, Vésperas de Sombra, Quetzal Editores, Lisboa 1998, ISBN 972-564-359-3.

 
Cortesia de Quetzal Editores/JDACT