sábado, 4 de agosto de 2012

Uma Tapeçaria inédita da Série dos feitos de D. João de Castro. Pedro Dias. «Não restam dúvidas de que o vice-rei teve um papel decisivo na expansão do gosto pelas obras de arte e preciosidades do Oriente entre os sectores mais elevados da sociedade do seu tempo, até porque conviveu com os homens do maior gabarito intelectual de Portugal e de Espanha»


Cortesia de wikipedia

«O vice-rei da Índia, João de Castro, é uma das personalidades mais fascinantes da História de Portugal, e muito particularmente da História da Expansão Portuguesa no Mundo. Desde cedo, o seu carácter de homem de palavra e de honra e de administrador impoluto, as suas acções de guerreiro temerário e de grande estratega, a sua acção como cientista e a sua erudição foram razões para que sobre ele se tenham vindo a debruçar muitos especialistas das diferentes áreas que a sua polifacetada acção abarcou.
Existem provas documentais de que João de Castro foi um grande apreciador das obras de arte orientais, quer da arquitectura hindu, por exemplo, quer das obras móveis, particularmente das preciosas que adquiriu no Oriente, o que o levou a visitar e a comentar por escrito sumptuosas templos hindustânicos que o maravilharam. Interessou-se igualmente pelas singularidades da Natureza, pela Fauna e pela Flora da África e da Ásia, além de que foi um cultor da Hidrografia, estudando as correntes, as embocaduras e até parte do leito de grandes rios, fazendo aquilo a que podemos chamar a cartografia do mar. Deixou-nos ainda vistas de zonas costeiras e de cidades da África Oriental, do Golfo Pérsico e da Índia.
Foi um dos primeiros portugueses a criar uma “câmara de maravilhas” aqui em Portugal, concretamente, na sua casa da Serra de Sintra. Igualmente contribuiu de forma decisiva para o enriquecimento de uma outra, e muito mais importante, a da rainha D. Catarina de Áustria, mulher de João III, uma das maiores coleccionadores de toda a Europa do século de Quinhentos. A documentação que se conserva nos arquivos e os textos coevos que foram dados à estampa não deixam dúvidas a este respeito, e devemos ter presente que D. Catarina era irmã de Carlos V, e tinha familiares chegados em quase todas as grandes Cortes europeias. Para mostrar a sua magnanimidade, ou por efectivo amor, fez-lhes chegar jóias, porcelanas, esculturas em marfim, caixas lacadas e com embutidos, leques, e muitas outras coisas nunca vistas nessas paragens, algumas das quais ainda se conservam em museus europeus. Algumas das obras que estiveram no seu “guarda-roupa” ou na sua “câmara de maravilhas” foram encomendadas ou compradas directamente pelo próprio João de Castro, ou ainda simplesmente ofertas suas. Não restam dúvidas de que o vice-rei teve um papel decisivo na expansão do gosto pelas obras de arte e preciosidades do Oriente entre os sectores mais elevados da sociedade do seu tempo, até porque conviveu com os homens do maior gabarito intelectual de Portugal e de Espanha: o matemático Pedro Nunes, o escritor e historiador André de Resende, o bispo e futuro cardeal Miguel da Silva, o historiador João de Barros, o matemático e filósofo Francisco de Melo, Cristóvão Rodrigues Acenheiro, Gaspar Barreioros, o autor da inesquecível Corographia, o músico Mateus de Aranda e, naturalmente, o infante Luís, filho de Manuel I e irmão do rei João III. Todos eles viveram em Évora, entre 1532 e 1535, quando João III e a Corte se transferiram para Évora. Aí, João de Castro teve que contactar obrigatoriamente com artistas como Nicolau Chanterene, Gil Vicente, Francisco de Holanda, Diogo de Castilho, Miguel de Arruda, Diogo de Torralva, Garcia Fernandes, etc.
Certamente que, como acontecia com coleccionadores, como Miguel da Silva e André de Resende, estes mais inclinados à arte clássica, e mesmo com a própria rainha D. Catarina, já referida acima, João de Castro além de admirar a beleza ou satisfazer-se apenas com o valor pecuniário das peças, gostava sobretudo de as estudar e de compreender o seu verdadeiro significado. Para ele o coleccionismo não foi uma forma de
aforro, mas sim um meio de enriquecimento cultural; a curiosidade foi afinal o topos que motivou, desde o início, a Expansão Portuguesa por terras e mares ignotos.
João de Castro, embora sem ser por iniciativa própria, acabou por promover ainda mais o gosto pelo exótico, pelas coisas do Oriente, através das imagens da série de tapeçarias que foi executada depois dele morrer, e que os seus descendentes ou outros do seu círculo próximo encomendaram na Flandres, e a que aquela que agora estudamos pertence indubitavelmente. Nestes “panos de raz” ou “arrazes” estão representadas as terras, os edifícios, a flora e a fauna da Índia, gente com trajos estranhos aos olhos europeus, todo um mundo novo que se descobria e que os portugueses, desde o inicio do século XV, vinham efectivamente descobrindo e divulgando na Europa. Aliás, o mesmo podemos dizer relativamente às tapeçarias comummente designadas “À maneira de Portugal e da Índia”, cuja primeira série e modelo de todas as subsequentes foi encomendada por Manuel I, para celebrar a chegada de Vasco da Gama ao Hindustão.


Temos que ter em conta que então se dispendia muito mais tempo do que hoje na observação e análise das obras de arte, e que estas eram alvo de verdadeiros colóquios entre frequentadores de cortes reais ou da nobreza que as possuía em quantidade e qualidade. São conhecidas as tardes de Filipe I de Portugal e II de Espanha passadas em frente ao seu tríptico pintado por Hieronimus Bosh, discutindo os mais ínfimos pormenores. No século XVI as imagens eram raras, e qualquer uma que estivesse disponível não deixava de prender a atenção de quem dela de acercava, sobretudo se eram homens e mulheres cultos». In Pedro Dias, Uma Tapeçaria Inédita da Série dos feitos de D. João de Castro, A importação de esculturas de Itália nos séculos XV e XVI, Coimbra, 1987.

continua
Cortesia de Wikipedia/JDACT