sexta-feira, 15 de março de 2013

A Chibata. Caminhos diversos. Virgil Gheorghiu. «Uma atmosfera de religiosidade e de humanidade patética em que assenta um lirismo sempre atento às realidades quotidianas, próximas da vida e da terra. Uma narrativa que se desenvolve em tom elevado e perturbador que, impondo a inocência, sublinha a audácia»

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Missão ao alvorecer
« - Amanhã, ao alvorecer, apresentar-te-ás com dois camiões no comando da polícia militar romena. Verificarás, a partir desta noite, os motores e mandarás enchê-los de gasolina. Levarás alimentos para ti e para o ajudante de motorista. Todo o dia de amanhã estarás às ordens do exército romeno. Como se chama o motorista do segundo camião? - Soldado Hans Kurt, meu capitão. O feldwebel Otto Ritter pôs-se em sentido. O capitão Konrad Vitalis, comandante do serviço de informações alemão, da cidade romena de Pascani, faz sinal ao oficial subalterno que pode sair. O capitão é alto, os seus cabelos são grisalhos. É um intelectual. No estado civil é professor universitário numa cidade do Sul da Alemanha. A mão do oficial, de dedos compridos, afilados e brancos, que folhearam um número incalculável de livros, indica a porta do gabinete. O sargento saúda e sai. Teria querido pedir pormenores, porque, para cada missão, os camiões são preparados de forma diferente. O capitão não o deixa falar.
O feldwebel passa à cantina, depois à garagem. Prepara os camiões, em conformidade com as ordens recebidas.
No dia seguinte, ao romper da manhã, os dois camiões alemães saem de Pascani e dirigem-se para Oeste, segundo as instruções do motorista da polícia romena. O feldwebel Otto Ritter e o soldado Hans Kurt ignoram tudo da missão que devem executar. Não ousam pedir explicações. O segredo é rigoroso em tempo de guerra. Saindo da cidade pelos campos, os camiões rodam, suavemente, na direcção das montanhas, que se perfilam para Oeste, como paredes azuis, subindo até ao céu. Os camiões rodam a cem metros um do outro, num caminho estreito, de terra batida. São os primeiros automóveis que rodam sobre esta estrada de campanha. Dois rastos de poeira, semelhantes a nuvens de chuva, erguem-se atrás dos camiões e esvoaçam por cima dos campos de milho verde, cujos penachos dourados se estendem dos dois lados da estrada.
 - A quantos estamos hoje, feldwebel? - pergunta o tenente Marcel Fanoti. Ele tomara lugar no primeiro camião, junto do motorista alemão. O tenente, um jovem aristocrata, de uns trinta anos, usa o uniforme de oficial de cavalaria romena. Alto e delgado, tem cabelos pretos, alisados pela brilhantina, a cara barbeada de há pouco e empoada, um bigode fino e preto, como duas vírgulas desenhadas a tinta-da-china, ou como sobrancelhas de rapariga. Dólman de caqui, com botões dourados, apertado com cinturão; calças cinzento-pérola, botas envernizadas, subindo até aos joelhos, esporas de prata; luvas de pele de porco, de cor clara, quase branca. Sobre os joelhos, o tenente tem uma chibata de coiro novo, com castão de prata, no qual estão inscritas as palavras: Jockey Club. Marcel Fanoti é oficial de reserva. Cheira a água-de-colónia fresca, a brilhantina, a pó-de-arroz, a tabaco loiro e a chocolate.
Ao lado do tenente, o feldwebel alemão que conduz o camião é jovem, pequeno, rechonchudo, louro como uma espiga de trigo maduro; a cara redonda, rosada e brilhante como uma lâmpada acesa. - Heute, são 23 de Agosto, Herr leutnant - responde o alemão. A cara ilumina-se-lhe ainda mais, de emoção, porque sabe que acaba de cometer um lapso. São as primeiras palavras que o oficial romeno e o sargento alemão trocam depois da sua partida de Pascani. Os dois não dormiram e não têm vontade de falar. Para partir em missão, levantaram-se antes do amanhecer. Além disso, a conversa entre eles é muito difícil, porque o tenente Fanoti não conhece senão uma dúzia de palavras alemãs e o alemão fala mal o romeno. O nome completo do feldwebel alemão é Otto Ritter Freiherr von Jahrmarkt. Ninguém lhe chama barão Ritter. No exército ele é o feldwebel Ritter.
O sargento alemão e o oficial romeno renunciam a continuar a conversa. Olham, em silêncio, os montes Cárpatos, que se estendem diante deles, a Oeste; o céu azul, como uma cúpula bizantina, por cima dos montes e dos campos verdes de milho, que se estendem sem fim, dos dois lados do caminho. Ao volante do segundo camião encontra-se o soldado alemão Hans Kurt. Usa o uniforme cor de pedra de enxofre, com curtas botas pretas. O soldado Hans Kurt tem, também, uma cabeça redonda e brilhante, como um facho aceso. Junto dele, o banco está vazio. Atrás dele, no segundo camião, estão amontoados dez militares romenos: nove soldados e um cabo. Alinhados nos bancos de madeira, cinco de um lado, cinco do outro, os dois grupos estão frente a frente, usam capacetes de aço, redondos e pesados como caçarolas, que lhes caem sobre as orelhas, e que estão fixados debaixo do queixo por largas correias de pele de boi.
Os dez homens usam uniforme de caqui espesso, rijo e enrugado como a casca de um velho carvalho, o cinturão e o talabarte de coiro, semelhantes aos arreios dos cavalos. À cintura de cada soldado pendem quatro cartucheiras carregadas. Duas granadas estão fixadas em cada anca. Os militares romenos seguram entre os joelhos a arma, baionetas de canhão, direita como uma tocha. Estes homens já não são novos. Todos ultrapassaram os cinquenta. Os rostos ossudos, enrugados, tisnados pelo sol e queimados pelos ventos. Como vasos de argila, que se descobrem na terra, depois de centenas de anos...» In Virgil Gheorghiu, A Chibata, tradução de António Fernandes, Livraria Bertrand, Lisboa.

Cortesia de L. Bertrand/JDACT