quarta-feira, 6 de março de 2013

Nadja. Leitura. André Breton. «É certo que a obra resultante dessa surpresa permanecia ligada por laços muito estreitos àquilo que provocara o seu nascimento, mas apenas se lhe assemelhava da maneira estranha como se parecem dois gémeos, ou melhor, a imagem em sonho de determinada pessoa e essa pessoa real»

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«Não será na medida exacta em que consiga tomar consciência desta diferença que hei-de descobrir o que vim fazer a este mundo e qual a mensagem única de que sou portador, ao ponto de só a minha cabeça responder pelo seu destino? A partir de tais reflexões, achava preferível que a crítica, renunciando, é certo, às suas mais caras prerrogativas, mas propondo-se sempre um objectivo menos vão que o do inventário mecânico das ideias, se limitasse a sábias incursões no domínio que julga ser-lhe mais interdito e que não é outro senão aquele, exterior à obra, onde a personalidade do autor, enredada nas mais ínfimas incidências da vida corrente, se exprime em absoluta independência, de maneira por vezes tão distintiva. A recordação desta anedota. Hugo, no fim da vida, a refazer com Julieta Drouet pela milésima vez o mesmo passeio sem interromper a sua meditação silenciosa, a não ser à passagem da caleça diante de uma propriedade com acesso por duas portas, uma grande, outra pequena, para designar a grande a Julieta: Porta de serviço, senhora, e ouvi-la responder, indicando a pequena: Porta principal, senhor; depois, um pouco mais adiante, em frente de duas árvores com os ramos entrelaçados: Filémon e,Baucis, sabendo que a isso Julieta não responderia, essa lembrança e a certeza de que uma cerimónia pungente como esta se repetiu diariamente durante anos, como é que o melhor estudo imaginável sobre a obra de Hugo nos daria a tal ponto a inteligência e a espantosa sensação de quem ele era, do que ele é? Nestas duas portas podemos ver os espelhos das suas força e fraqueza, e não se sabe qual lhe reflecte a mesquinhez, qual a grandeza.
Todo o génio do mundo seria inexequível para nós se não admitisse a seu lado o amor, essa adorável correcção que cabe inteira na réplica de Julieta. O mais subtil, o mais entusiasta comentador da obra de Hugo nunca me fará partilhar nada que valha este sentido da proporção. Como gostaria de possuir, sobre todos os ,homens que admiro, um documento privado do valor daquele. Na sua falta, já me havia de contentar com documentos de menor valia, pouco capazes de se bastar a si próprios do ponto de vista afectivo. Não pratico o culto de Flaubert e contudo se me garantem que, segundo ele próprio confessou, só pretendeu, com Salammbô, dar a impressão da cor amarela, com Madame Bovary fazer alguma coisa que fosse da cor do mofo que aparece nos recantos onde há bichos-de-conta, e que o resto lhe era absolutamente indiferente, estas preocupações, em última análise, extraliterárias, dispõem-me em seu favor. A magnífica luz dos quadros de Courbet, para mim, é a da praça Vendôme à hora em que a coluna ruiu.
Nos dias de hoje, se um homem como Chirico consentisse em revelar integralmente e, bem entendido, sem arte, o mais claro do que outrora o fez agir, disposto a entrar nos pormenores mais ínfimos e inquietantes, o passo que não faria avançar à exegese! Sem ele, que digo eu, apesar dele! Recorrendo unicamente ,às suas telas dessa época e a um caderno manuscrito que tenho entre mãos, só imperfeitamente se pode tentar a reconstituição do universo que foi o seu até 1917. É profundamente lamentável a impossibilidade de preencher essa lacuna e descortinar plenamente tudo o que, em semelhante universo, vai contra a ordem previsível e ergue uma nova escala das coisas. Nesse período, Chirico admitiu que só podia pintar surpreendido por certas disposições dos objectos e que todo o enigma da revelação se resumia, para ele, nesta palavra: surpreendido. É certo que a obra resultante dessa surpresa permanecia ligada por laços muito estreitos àquilo que provocara o seu nascimento, mas apenas se lhe assemelhava da maneira estranha como se parecem dois gémeos, ou melhor, a imagem em sonho de determinada pessoa e essa pessoa real. É, e ao mesmo tempo não é, a mesma pessoa; leve e misteriosa transfiguração lhe altera as feições.
Aquém destas disposições de objectos que para ele se revestiram de uma flagrância particular, também seria oportuno fixar a atenção crítica nos objectos considerados em si próprios e procurar saber por que razão foram chamados, aqueles, em número tão diminuto, e não outros, a ser dispostos assim. Sobre Chirico, nunca se dirá nada de importante enquanto não forem acuradamente dilucidados os seus pontos de vista mais subjectivos sobre a alcachofra, a luva, o bolo seco ou o carrinho de linhas. Pena é que em semelhante matéria não se possa contar com a sua colaboração!» In André Breton, Nadja, Editions Gallimard, 1964, Editorial Estampa, tradução de Ernesto Sampaio, Lisboa, 1971.

Cortesia E. Estampa/JDACT