sexta-feira, 15 de março de 2013

Crisfal. Cristóvão Falcão. «E com quanto era Maria piquena, tinha cuidado de guardar milhor o gado o que lhe Crisfal dezia; mas, em fim, foi mal guardado. A qual, logo aquele dia que soube de seus amores, aos parentes de Maria fez certos e sabedores de tudo quanto sabia»

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I
Antre Sintra, a mui prezada,
e serra de Ribatejo
que Arrábeda é chamada,
perto donde o rio Tejo
se mete n’água salgada,
houve um pastor e pastora,
que com tanto amor se amarom
como males lhe causarom
este bem, que nunca fora,
pois foi o que não cuidarom.

II
A ela chamavam Maria
e ao pastor Crisfal,
ao qual, de dia em dia,
o bem se tornou em mal,
que ele tam mal merecia.
Sendo de pouca idade,
não se ver tanto sentiam,
que o dia que não se viam,
se viam na saudade
o que ambos se queriam.

III
Algas horas falavam,
andando o gado pascendo,
e então se apascentavam
os olhos, que, em se vendo,
mais famintos lhe ficavam.
E com quanto era Maria
piquena, tinha cuidado
de guardar milhor o gado
o que lhe Crisfal dezia;
mas, em fim, foi mal guardado;

IV
Que, depois de assi viver
nesta vida e neste amor,
depois de alcançado ter
maior bem pera mor dor,
em fim se houve de saber
por Joana, outra pastora,
que a Crisfal queria bem;
(mas o bem que de tal vem
não ser bem maior bem fora,
por não ser mal a ninguém).

V
A qual, logo aquele dia
que soube de seus amores,
aos parentes de Maria
fez certos e sabedores
de tudo quanto sabia.
Crisfal não era então
dos bens do mundo abastado
tanto como do cuidado;
que, por curar da paixão,
não curava do seu gado.

VI
E como em a baixeza
do sangue q e pensamento
é certa esta certeza -
cuidar que o mericimento
está só em ter riqueza -
enquerirom que teria[m]
e do amor não curarom;
em que bem se descontarom
riquezas, se faleciam,
por males que sobejarom.

VII
Então, descontentes disto,
levarom-na a longes terras,
esconderom-na entre as serras,
onde o sol não era visto,
e a Crisfal deixarom guerras.
Além da dor principal,
pera mor pena lhe dar,
puserom-na em lugar
mau para dizer seu mal,
mas bom pera o chorar.

VIII
Ali os dias passava
em mágoas, da alma saídas,
dizer a quem longe estava,
e chorava por perdidas
as horas que não chorava.
Em vale mui solitário e
sombrio e saudoso,
send’o monte temeroso,
pera o choro necessário,
pera a vida mui danoso,

IX
Dizer o que ele sentia,
em que queira, não me atrevo,
nem o chorar que fazia;
mas as palavras que escrevo
são as que ele dezia.
Ali sobre a ribeira
de mui alta penedia,
donde a água d’alto caía,
dizendo desta maneira
estava a noite e o dia:

X
Os tempos mudam ventura
bem o sei, pelo passar;
mas, por minha gram tristura,
nenhuns puderam mudar
a minha desaventura.
Não mudam tempos nem anos
ao triste a tristeza;
antes tenho por certeza
que o longo uso dos danos
se converte em natureza.

In Cristóvão Falcão, Crisfal, Coleção Textos Literários, Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa, 2ª. Edição, Lisboa, 1962.

Cortesia de Textos Literários/JDACT